quinta-feira, 4 de julho de 2024

Candidaturas Fictícias - análise das Eleições 2020 no Rio Grande do Sul

É com grande alegria que divulgo a conclusão da pesquisa em que examinei as ações eleitorais que tratavam das fraudes às cotas de gênero nas Eleições 2020 no Rio Grande do Sul.

O estudo, realizado no curso de mestrado da Universidade Federal de Pelotas - UFPel, abrangeu a análise das implicações sociais e jurídicas das candidaturas fraudulentas de mulheres nas eleições, destacando a importância da participação feminina na política e sua relação com a democracia. As cotas de gênero foram consideradas inicialmente de maneira abrangente e, especificamente, no caminho trilhado na implementação dessa política pública no Brasil, destacando os desafios enfrentados para sua efetivação. O foco especial foi direcionado à intervenção do poder judiciário no combate às práticas de partidos políticos que corroem a política pública afirmativa, assim como nos instrumentos legais disponíveis para coibir as candidaturas fraudulentas de mulheres, destacando casos emblemáticos e decisões relevantes.

Na sequência, foi realizada análise mais aprofundada sobre as decisões judiciais proferidas pela Justiça Eleitoral em processos ajuizados para apurar supostas fraudes no registro de candidatas para o cargo de vereadora no Rio Grande do Sul nas Eleições de 2020 com a finalidade de proporcionar uma compreensão abrangente dos desafios enfrentados pelos tribunais na proteção da integridade do processo eleitoral. Ao destacar as situações específicas, as consequências para a representatividade e as respostas judiciais, este estudo procurou contribuir para uma compreensão mais profunda de um fenômeno que afeta diretamente a legitimidade do sistema político.

As principais decisões analisadas foram agregadas ao arquivo que contem a pesquisa após as referências bibliográficas.

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Porto Alegre, no Estado do Rio Grande do Sul, é a capital brasileira que possui mais mulheres eleitas para a Câmara de Vereadores: foram escolhidas 11 mulheres para ocupar parte das 36 vagas disputadas nas Eleições Municipais de 2020. Em termos percentuais, a população elegeu 30,6% de candidatas mulheres e 69,4% de candidatos homens. Embora comemorado e tido como um grande avanço, não há como não reconhecer sua excepcionalidade: o fenômeno aconteceu em raras cidades do país e está distante do ideal, já que as mulheres representam mais de 51,8% da população e mais de 52% do eleitorado brasileiro, segundo os dados divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral - TSE. No extremo oposto de Porto Alegre, entre as capitais, está João Pessoa, na Paraíba, que elegeu 1 (uma) mulher (3,7%) e 26 homens (96,3%). A persistente manutenção da desigualdade de gênero na política passou a ser combatida no âmbito jurídico mediante ações afirmativas, já que a democracia pressupõe a cidadania. A fim de possibilitar que as mulheres possam exercer com equidade a cidadania, tanto elegendo representantes quanto sendo eleitas, e viabilizar a representação feminina nos parlamentos, o Brasil adotou cotas de candidaturas para buscar corrigir a baixa representação feminina na política. Mas tanto as dificuldades na aplicação da previsão legal quanto as tentativas de fraude que se evidenciaram a partir da efetiva implementação da reserva de vagas demonstram o quão distante estamos da representatividade real. Os resultados pouco expressivos alcançados no país desde a implantação da política pública de incentivo e a persistência do baixo número de mulheres eleitas abrem a possibilidade de investigação sobre as causas do fenômeno. Nessa linha, o debate acadêmico internacional e brasileiro tem percorrido todas as etapas do processo eleitoral e da participação política dentro das esferas formais de representação com vistas a diagnosticar as barreiras que persistem ao acesso e permanência das mulheres no poder político (MERLO, 2018). A presente pesquisa se insere nesse contexto, almejando analisar um conjunto de casos concretos na busca de evidências e conexões que expliquem os resultados pouco expressivos alcançados pelo Brasil desde a implantação da política pública de incentivo à participação feminina na política, partindo da análise da disputa ao cargo de vereadora no Rio Grande do Sul nas Eleições Municipais do ano de 2020. A proposta consiste em investigar, de forma concreta, com base em dados constantes em processos judiciais, as tentativas de fraude às cotas de gênero em eleições, uma temática relevante e ainda pouco explorada no campo da Ciência Política. A importância desse estudo é justificada pela necessidade de compreender as dinâmicas que permeiam a participação política das mulheres, a fim de que se encontrem meios de garantir a efetividade das políticas de inclusão. As cotas de gênero representam um mecanismo crucial para corrigir desigualdades históricas e promover a representatividade feminina nos órgãos legislativos. Contudo, a eficácia dessa política é ameaçada por tentativas de fraude, as quais podem comprometer que se avance na promoção da igualdade de gênero. Investigar como essas dinâmicas ocorrem é fundamental para identificar lacunas e propor medidas preventivas e corretivas. Ainda, o debate em torno das tentativas de fraude às cotas de gênero contribui para uma compreensão mais profunda dos desafios enfrentados pelas mulheres na esfera política. Isso inclui não apenas obstáculos práticos, mas também resistências culturais e estratégias que buscam subverter a representação feminina. Analisar essas questões não apenas enriquece o campo da Ciência Política, mas também fornece subsídios para a formulação de políticas públicas mais eficientes e inclusivas. Apesar da crescente importância da representatividade de gênero, há uma escassez de estudos dedicados especificamente ao tratamento que o Poder Judiciário dá às tentativas de fraude às cotas de gênero em eleições. Nessa linha, localizamos os estudos de Luciana de Oliveira Ramos et al (2020) e de José Wilson Ferreira de Araújo Júnior (2021), que, no entanto, ficaram centrados em decisões localizadas em Tribunais Regionais Eleitorais e no Tribunal Superior Eleitoral, sem se dedicar aos relatos de como ocorreram os fatos. . Portanto, esta pesquisa visa preencher essa lacuna, contribuindo para a ampliação do conhecimento científico nessa área específica e estimulando futuras investigações. Meu interesse pessoal no tema decorre da percepção da persistência de barreiras à participação das mulheres e da ausência de consolidação de dados sobre as fraudes. Apesar de ser servidora da Justiça Eleitoral e acompanhar os debates sobre esse ponto, percebo que suas peculiaridades, tanto em relação ao modo como as fraudes são perpetradas, quanto aos desdobramentos jurídicos, ainda são pouco exploradas na academia. O problema de pesquisa envolve, então, investigar, a partir dos dados colhidos em processos judiciais e daqueles disponíveis nos bancos de dados da Justiça Eleitoral: quais os contextos em que os atores políticos violam ou são acusados de violar a reserva de vagas de gênero e qual é o tratamento que a Justiça Eleitoral dá a essas situações, considerando a disputa ao cargo de vereadora no Rio Grande do Sul nas Eleições Municipais de 2020? A hipótese a ser verificada não desborda das explicações normalmente relacionadas às resistências às políticas de incentivo ao incremento da participação de mulheres na política e ao registro de candidaturas fraudulentas de mulheres, que vão desde o registro de mulheres que não desejam ocupar um cargo eletivo, quanto a indicação pelos partidos políticos de candidatas com baixo ou inexistente capital político, desistências de campanha em razão da falta de apoio da família ou de premências familiares (ocupação apenas do espaço privado) ou quadros onde sobressai a estrutura partidária pouco favorável. A especificidade da pesquisa consiste em verificar o contexto em que ocorrem essas situações para fornecer contribuições ao enfrentamento das barreiras que alimentam esse importante déficit democrático. Ainda, verificar o tratamento que o Poder Judiciário gaúcho vem dando à questão também pode auxiliar para compreender o quadro local. O objetivo geral deste trabalho, dessa forma, é realizar análise empírica sobre os motivos da sub-representação política das mulheres a partir dos achados em ações judiciais em que se apurou a fraude às cotas de gênero nas eleições proporcionais no Rio Grande do Sul em 2020. O exame, através da resposta dada pelo Poder Judiciário às acusações de realização de campanhas fraudulentas por mulheres, também pode possibilitar a análise do estágio de implementação da cidadania atualmente em curso na região. Como objetivos específicos, podem ser arrolados levantar dados sobre processos na Justiça Eleitoral do Rio Grande do Sul que apurem a existência de candidatura femininas fraudulentas registradas para o cargo de vereadora nas Eleições 2020 no Rio Grande do Sul; nas decisões proferidas nesses processos, identificar as características das candidatas e dos partidos envolvidos, bem como sobre a experiência dessas mulheres na campanha eleitoral; e compilar a argumentação utilizada pelos juízes eleitorais tanto para reconhecer a regularidade quanto a irregularidade das candidaturas supostamente fraudulentas. Ainda, se buscará elencar principais características verificadas nas candidaturas femininas mal sucedidas na eleição em questão; confrontar os achados locais com a literatura específica sobre a participação política feminina; identificar o tratamento que a Justiça Eleitoral local dá à questão da participação política das mulheres e o prestígio ou desprestígio à política afirmativa; e eventualmente, constituir subsídios que permitam o desenvolvimento de mecanismos aptos a coibir o desvirtuamento da política afirmativa. A fim de coletar dados sobre essa realidade, o presente trabalho foi desenvolvido sob duas perspectivas metodológicas: a pesquisa teórico-bibliográfica e a jurisprudencial (documental). Sempre que possível e como forma de associar o marco teórico-conceitual aos elementos localizados na pesquisa, foram destacados recortes dos achados na pesquisa jurisprudencial (documental) nos capítulos iniciais. Sobre decisões proferidas pelos juízes eleitorais, desembargadores e ministros que compõem a Justiça Eleitoral, foi utilizada a análise de conteúdo de natureza qualitativa, ainda que alguns dados quantitativos tenham sido também levantados, carentes de maior rigor técnico e submetidos às limitações que serão apropriadamente destacadas. A seleção dos casos analisados na pesquisa se deu, inicialmente, em relação ao órgão julgador dos casos - Justiça Eleitoral, podendo abranger juízas e juízes eleitorais do Rio Grande do Sul, Tribunal Regional Eleitoral deste Estado e Tribunal Superior Eleitoral. O segundo recorte se deu em relação ao período: foram selecionadas decisões que analisaram o cumprimento da cota de gênero para candidaturas proporcionais nas Eleições 2020 no Rio Grande do Sul, proferidas até abril de 2023. Após a seleção das decisões, procedeu-se à sua leitura, optando-se por trabalhar com cada chapa (nominata de candidatas e candidatos) como uma unidade de análise e, dentro dela, com as razões expostas no texto como elementos de exame. Foram coletados e catalogados diversos dados de cada decisão, como fatores de identificação do caso: identificação do processo judicial, município, número de mulheres envolvidas, partidos que registraram as candidaturas supostamente irregulares, número de votos das candidaturas reputadas fraudulentas. Embora se tenha coletado outras informações além das mencionadas, optou-se por não utilizá-las na pesquisa por razões que são expostas no tópico pertinente. Se buscou realizar a seleção de casos com base em critérios predominantemente objetivos e, a partir deles, examinar a aplicação da política pública nos casos concretos, constituir material e indicar caminhos para as pessoas que pesquisam a temática e como elemento de informação para a sociedade em geral. Não se intentou elaborar conceito sobre as candidaturas femininas fraudulentas a partir das decisões da Justiça Eleitoral examinadas, ainda que os conceitos já formulados sejam utilizados ao longo do texto, mas sim evidenciar como o Poder Judiciário local enfrenta essa questão, tanto reconhecendo situações de fraude como rejeitando sua configuração. Ainda como aspecto introdutório, é importante esclarecer que se buscou desprezar, nas decisões objeto de estudo, a fundamentação estritamente jurídica utilizada pelo julgador para justificar a decisão (questões preliminares ou estritamente processuais; artigos de lei ou remissões a outros precedentes judiciais, salvo uma breve análise sobre a questão da prova). Extirpados esses elementos, os dados qualitativos restantes foram apresentados como forma de evidenciar relatos da disputa local, as provas obtidas e declarações das candidatas e outras testemunhas, as motivações que levaram o Ministério Público ou outros interessados a apresentar o caso ao Poder Judiciário e os dados considerados relevantes para o julgador para decidir a demanda. Se considerou que seria importante verificar as características das disputas políticas locais e analisar o contexto em que as candidaturas supostamente fraudulentas estavam inseridas, bem como o tipo de resposta oferecido às comunidades envolvidas. Através do exame das decisões, se intentou, portanto, obter dados sobre as candidatas, sobre os partidos supostamente envolvidos nas fraudes, sobre os motivos elencados pelos envolvidos para justificar o mau desempenho das mulheres e sobre as motivações externadas pelos julgadores para considerar as candidaturas legítimas ou ilegítimas. Nos relatos das situações encontradas e nas citações, optou-se por omitir o nome completo dos envolvidos, como forma de preservar a imagem de partícipes e não personalizar eventuais críticas nem divergências, ainda que o primeiro nome tenha sido preservado como forma de humanizar a relação que está sendo analisada. Ressalta-se, no entanto, que as decisões estão submetidas à publicidade e devem estar acessíveis a qualquer interessado, já que, nesse tipo de processo judicial, o interesse coletivo deve sobressair em relação a eventual interesse das partes. Diversamente de outros estudos, como aquele realizado por Ramos et al (2022), que, para investigar os contornos legais das candidaturas fictícias construídos pela Justiça Eleitoral, optou por restringir a análise aos processos em que foi reconhecida a fraude, aqui intentamos apurar os casos e analisar os dados encontrados tanto em ações que reconheceram a fraude, quanto naquelas que não reconheceram, a fim de possibilitar que se faça cotejo entre os casos localizados e que se apure a motivação externada pelo Poder Judiciário no seu julgamento. Para cumprir a proposta da dissertação, este trabalho foi dividido em três partes, iniciando por capítulo em que se destacam as questões que relacionam democracia e gênero. Nessa etapa, são mencionados estudos sobre cidadania e a importância da participação das mulheres na democracia, assim como o mecanismo adotado para fortalecer a representatividade: as cotas de gênero em candidaturas. No capítulo seguinte, foi descrita a norma que prevê a reserva de candidaturas por gênero no Brasil e as dificuldades para sua plena execução, sendo também abordado o caminho percorrido pelo Poder Judiciário na interpretação da norma. Ainda, partindo para as ações judiciais em que a fraude à política pública é discutida na Justiça Eleitoral, se aborda brevemente a definição de candidatura feminina fraudulenta e as provas de fraude produzidas em juízo, com recortes de achados na pesquisa realizada sobre as candidaturas femininas supostamente fraudulentas nas Eleições Municipais de 2020 no Rio Grande do Sul. Por fim, é realizada uma breve contextualização dos aspectos que envolveram as Eleições 2020, em especial, aqueles sanitários e legislativos, para então se partir para análise quantitativa dos dados coletados. Ao término, também são reescritas situações observadas nos processos que mereceram destaque. Em conclusão, são retomados os principais conceitos, apresentados os aspectos mais substanciais da apuração, bem como explicitados os problemas detectados durante a pesquisa. 2. Democracia e gênero Por que se vê poucas mulheres nos espaços de poder ou por que o número de mulheres em posições de decisão não é proporcional à quantidade de eleitoras em nosso país? E quais são as repercussões disso? A democracia liberal considera a diferença como sendo prioritariamente uma questão de idéias e tem que a representação é tanto mais adequada quanto melhor reflete as opiniões, preferências ou crenças dos votantes. Nessa linha, problemas de exclusão política são atribuídos ao sistema eleitoral (que pode super-representar certas opiniões e sub-representar outras) ou ao acesso das pessoas à participação política. No entanto, é possível formular questões que desafiam essas concepções clássicas e ressaltam a importância da inclusão de membros de grupos distintos na representação política: como um homem pode substituir legitimamente uma mulher quando está em questão a representação das mulheres per se? Uma assembleia formada só por brancos pode realmente se dizer representativa, quando aqueles que ela representa possuem uma diversidade étnica muito maior (PHILLIPS, 2001). Da mesma forma, a associação de características consideradas como masculinas – como a agressão e a competição – com a política significa que os homens são automaticamente considerados qualificados para cargos públicos; já a associação das mulheres com características consideradas como femininas – como carinho e suavidade – significa que as mulheres são vistas como menos viáveis politicamente. Estes processos de fixação de papéis de gênero também estruturam as realidades sociais, fazendo com que as mulheres assumam maiores responsabilidades de cuidado e, assim, enfrentem restrições adicionais na prossecução de carreiras políticas (FRANCESCHET e PISCOPO, 2014). O déficit de cidadania é um déficit democrático (ARAÚJO, 2012). A teoria democrática tradicional construiu uma cidadania abstrata, prática denunciada pelos estudos que associam democracia à representatividade. A partir da ação dos movimentos feministas, foram expostos diferentes fatores, dentre eles a divisão sexual do trabalho, que impõe diversas barreiras à participação igualitária das mulheres nos espaços públicos. Dentre os instrumentos criados para tentar eliminar, ou pelo menos minimizar, essas barreiras, estão as cotas de gênero na política. São ações afirmativas que foram implantadas em grande parte dos países da América Latina, dentre eles o Brasil. Porém, as cotas de gênero encontram importante resistência no país. Este capítulo se propõe a introduzir o tema que fundamenta a pesquisa qualitativa, mencionando os debates teóricos acerca da participação feminina na política e abordando a questão do mecanismo de cotas de gênero na política no Brasil. 2.1 Gênero e cidadania O debate sobre democracia e gênero envolve uma chave analítica que é tanto requisito como pressuposto: a cidadania (ARAÚJO, 2012). Tomando como referência a democracia como um processo inacabado, Araújo propõe considerar os limites e os déficits da cidadania em sua interseção com os déficits democráticos. Nesse contexto, as mulheres podem ser sujeitos da construção, evocação ou negação da cidadania. Falar de cidadania das mulheres é salientar dificuldades e desvantagens, demandar direitos, pensar e propor políticas públicas. Apesar disso, tanto a teoria democrática quanto às práticas políticas tradicionais sempre assumiram a existência de uma cidadania abstrata, sem corpo, sem classe, sem etnia e sem gênero, sendo relativamente recentes os estudos que associam a democracia à representatividade (SAGOT, 2009). Considerando a perspectiva de gênero, os movimentos feministas e a produção de conhecimento nutrida por sua agenda e sua atuação tiveram e têm papel central na quebra desse paradigma ao expor as relações de poder na política, conectando a divisão do trabalho no cotidiano com aquela que se estabelece nesse espaço e mostrando que a ausência de regras discriminatórias não corresponde a uma neutralidade de gênero (BIROLI et al, 2020). Dentre as importantes contribuições das teorias políticas feministas para o avanço das análises teóricas e empíricas sobre a democracia, no que diz respeito a esta pesquisa, são especialmente relevantes as críticas às formas modernas e contemporâneas da dualidade entre a esfera pública e a esfera privada. Isso porque a divisão sexual do trabalho “evidencia as conexões entre as relações de poder no cotidiano e a baixa permeabilidade das democracias contemporâneas”. As mulheres constituem “um grupo onerado pelo cotidiano de trabalho não remunerado, direcionado a ocupações específicas, relativamente menos remunerado no trabalho e sub-representado na política” (BIROLI, 2016, p. 719-721). Clara Araújo (2012) coloca que a esfera pública, separada e paralela à esfera privada, foi reconhecida como o âmbito legítimo para a viabilização da política pelo cidadão, na qual se transcendem e mesmo supostamente inexistem os interesses particulares da vida privada. O discurso da diferença e dos lugares naturalmente apropriados para cada sexo foi fundamental para a construção da ordem moderna e para a aceitação da não cidadania das mulheres, sem que fosse necessário negar sua condição humana. No entanto, essa concepção se constitui em barreira para o acesso das mulheres à esfera pública e à representação. O debate político contemporâneo sobre a participação política das mulheres enfatiza a questão de justiça ou de reconhecimento, a partir da premissa de que é ilógico e antinatural o sistema político democrático sustentar uma noção segundo a qual a capacidade e as virtudes necessárias à vida pública são atributos exclusivos do gênero masculino. As instituições não seriam neutras, mas possuiriam vieses ou incentivos que fazem com que determinados resultados sejam mais prováveis do que outros e, marcadas pelas circunstâncias do seu desenvolvimento histórico, refletem as relações de poder da sua origem. Como as instituições de representação foram criadas no contexto de relações de gênero assimétricas, isso produziu importantes implicações para a representação substantiva das mulheres (FRANCESCHET apud MOISÉS e SANCHEZ, 2014). As dinâmicas sociais evidenciam a questao de gênero em sua acepção política, pois como ensina Carole Pateman, falar em gênero, em vez de falar em sexo, possibilita que a condição das pessoas - em especial, das mulheres - seja dissociada de um determinante natural, biológico ou ligado ao sexo, evidenciando a invenção social e política desses constructos. Nas palavras da autora, (...) o que os homens e as mulheres são, e como as relações entre eles estão estruturadas, depende muito da importância política atribuída à masculinidade e à feminilidade. Utilizar a linguagem do gênero reforça a linguagem do civil, do público e do indivíduo, uma linguagem que depende da supressão do contrato sexual. (PATEMAN, 1993, p. 330) Pateman (1993) também afirma que o voto e outras reformas, como a participação de mulheres em júris, a legislação da igualdade de remuneração e da antidiscrinação, a reforma das leis do casamento e do estupro, a descriminalização da prostituição, mesmo encaradas à época como conquistas que permitiriam às mulheres se tornarem cidadãs e detentoras da propriedade em suas pessoas - tal qual os homens -, não trouxeram a esperada igualdade de condições. Silveira (2019), tratando especificamente sobre o tratamento dado à mulher no Brasil, lembra que, até 1962, a mulher era considerada relativamente incapaz e dependia do seu marido para exercer inúmeros direitos, e que parte das desigualdades legais e da noção de incapacidade civil foi alterada com o Estatuto da Mulher Casada. Considerando que as leis são um importante instrumento de manutenção ou combate das desigualdades, ganha relevo a participação política de todos os grupos em seus processos de elaboração e deliberação, emergindo daí a importância de verificar o acesso das mulheres aos cargos de decisão. O direito das mulheres de participar da tomada de decisões públicas em igualdade de condições se dá também em razão de que o talento não está confiado a um dos gêneros e de que a ausência de mulheres parlamentares representa discriminação direta ou indireta. Da mesma forma, outro argumento, o simbólico, enfatiza o efeito da presença de mulheres na política sobre o status das mulheres em geral, elevando as aspirações destas, bem como a importância da representatividade para a legitimidade das instituições (SAWER, 2000). A exclusão de uma parte dos indivíduos - as mulheres - da esfera política pode se afirmar decorrente de “estratégias de valorizações, injunções e proibições voltadas para sustentar e moldar determinada identidade feminina” (ARAÚJO, 2012, p. 153-154) incompatível com a esfera pública, em especial, com a política, e destinada à sua via paralela, a esfera privada. A dicotomia público-privado, que atribui características próprias ou associadas a cada sexo, justifica a exclusão das mulheres da cena pública sem que seja necessário excluí-las da comunidade ou negar sua condição de cidadã . Teresa Sacchet (2009), em estudo que envolve capital social, gênero e representação política no Brasil, aponta que os fatores que dificultam a entrada de mulheres em cargos públicos são de ordem cultural, social e institucional. Os fatores culturais estão relacionados à cultura política e ao capital social, o qual pode ser do tipo privado ou público. O primeiro é constituído por redes estabelecidas a partir das experiências associativas de indivíduos em grupos que, embora possam ser oficialmente registrados, têm um caráter mais informal e voluntarista, compostos por pessoas que têm experiências similares e relacionados às questões da vida familiar e comunitária, vizinhança ou fé religiosa. Já o capital social público está ligado a redes externas, com ligações menos profundas, porém, mais abrangentes, estabelecidas entre grupos mais heterogêneos e plurais. Seus membros têm formação, conhecimentos e experiências diversas, como por exemplo, membros de partidos, de clubes esportivos, de grupos profissionais etc. Da mesma maneira, também tem caráter público as ligações com pessoas e grupos que estão em posição de poder ou de influência, sejam elas relativas à economia ou à política, ou às ligações dos indivíduos com as instituições formais. Sacchet (2009) afirma que, nas sociedades plurais e complexas contemporâneas, marcadas por disputas por recursos públicos escassos entre diferentes grupos, o capital social de caráter público é considerado mais importante sob a perspectiva do seu retorno político e econômico. O capital social também é distribuído de forma desigual entre pessoas com diferentes recursos socioeconômicos e culturais e apresenta marcantes vieses de gênero. Ele está diretamente relacionado ao discurso da diferença e dos lugares naturalmente apropriados para cada sexo, já que mulheres e homens tendem a apresentar índices similares de capital social, mas aquele associado às mulheres é normalmente adquirido em grupos menores e mais homogêneos ligados à esfera da família e da comunidade, que têm um caráter mais voluntarista, ao passo que os homens participam em grupos mais heterogêneos ligados à esfera pública do trabalho, economia e lazer, como por exemplo, associações profissionais, sindicatos, clubes, grêmios, etc., os quais dariam retornos políticos distintos. Os homens têm maior capital do tipo público, que são mais efetivos para a geração de recursos eleitorais, como capital financeiro e conhecimento político. O mesmo estudo também indica que a participação das mulheres em associações da esfera pública parece ser facilitada quando elas são mais jovens e, portanto, tendem a ter menos obrigações com as tarefas da casa e da família, já que dados estatísticos mostram que a participação das mulheres só se iguala a dos homens nas atividades estudantis. “Quem” se responsabiliza pelo “quê” é a questão central para compreender como e por que as mulheres vão trilhando suas carreiras com custos diferentes, e maiores, do que os homens. Isso tem a ver com os papéis desempenhados, com as expectativas em relação a quem os desempenha e, claro, com trabalho que se assume ou de que se é liberado (BIROLI et al, 2020). Os estudos refutam a noção de que as mulheres não se interessam por política mencionando as ações das cidadãs nos espaços da sociedade civil e destacando, como exemplos, o papel articulatório que elas desempenharam durante a ditadura militar, em especial através da igreja, movimentos comunitários, encabeçando protestos por melhorias nas condições de vida e na infraestrutura do seu bairro, organizando campanhas de protestos. No entanto, essas modalidades de participação cívica não estão direta ou necessariamente relacionadas à participação política, assim como o papel imposto às mulheres acarreta que sua participação seja facilitada no âmbito privado, no auxílio a outras mulheres, como suas mães, sogras, filhas, e vizinhas, em “suas” atribuições. Essa separação entre agentes políticos (homens) e agentes sociais (mulheres) contribui para firmar estereótipos e predefinir papéis em diferentes esferas da sociedade, perpetuando desigualdades de influência e poder (SACCHET, 2009). Sanchez (2015) evidencia a contribuição das teorias políticas feministas sobre a questão da representação política, também destacando a divisão sexual do trabalho como elemento central para a análise da democracia. Ao evidenciar as conexões entre as relações de poder no cotidiano e no espaço privado e as relações de poder no espaço público, as feministas apontam para os silenciamentos produzidos pelas teorias não feministas da democracia que têm como base a divisão entre público e privado. A posição estrutural diferenciada de homens e mulheres leva a formas desiguais de participação na esfera política, já que, para os homens, de forma geral, a carga desigual produzida pela divisão sexual do trabalho não é um problema. Os afazeres domésticos não fazem parte de suas experiências cotidianas e não subtraem o tempo que então pode ser despendido com atividades políticas. Já para as mulheres, o trabalho doméstico e de cuidado com os filhos incide diretamente sobre seu cotidiano e suas oportunidades, seria corroborado pelo fato de a maioria dos homens que ocupam cargos na política institucional ser casada, enquanto a grande quantidade de políticas mulheres, solteiras ou viúvas. Enquanto o casamento para os homens é um elemento que facilita sua participação política, o matrimônio se torna um fardo para as mulheres. Este fenômeno pode ser atenuado ou potencializado por questões econômicas e raciais, mas é determinante para que a atuação política cotidiana, no âmbito local, comunitário e nos movimentos sociais, que muitas vezes é protagonizada por mulheres, não seja transposta para a representação política eleitoral e para outras formas de exercício direto de influência política (SANCHEZ, 2015). Como se depreende do contexto explicitado, a conceituação de trabalho, no que tange à sua divisão sexual, é ampliada, incluindo o trabalho profissional e doméstico, formal e informal, remunerado e não-remunerado (HIRATA, 2010). A divisão sexual do trabalho e os estereótipos de gênero produzem, conjuntamente, uma série de desvantagens para as mulheres, mesmo quando deixaram de existir impedimentos legais à sua participação na política ou ao exercício de ocupações historicamente consideradas masculinas. A análise da dimensão formal dos impedimentos pode ser pouco esclarecedora dos obstáculos à igual participação das mulheres, restando o desafio de explicitar quais são as dinâmicas que restringem o acesso aos espaços de maior visibilidade e prestígio, mesmo quando se apresentam como se não fossem reguladas pelo gênero. No ponto, fica a ressalva de que não se atribui a desigualdade à variável de gênero isolada e não se desconhece sua interseccionalidade com outros fatores, em especial, a raça (BIROLI, 2020; BIROLI e MIGUEL, 2015). Flávia Biroli (2016), em outro estudo, explica que “o gênero não se configura de maneira independente em relação à raça e à classe social, nem é acessório relativamente a essas variáveis. A divisão sexual do trabalho impacta as mulheres por serem mulheres, ainda que o resultados não seja o mesmo sobre todas”. Sob outra perspectiva, Hirata (2010, p. 2) traça interessantes considerações sobre a bipolarização do emprego feminino. A pesquisadora, reconhecendo que as “mulheres são, atualmente, mais instruídas e diplomadas que os homens praticamente em todos os níveis de escolaridade e em todos os países”, distingue a existência de dois pólos, um “formado por mulheres executivas, profissionais intelectuais de nível superior (médicas, advogadas, juízas, arquitetas, engenheiras, jornalistas, professoras universitárias, pesquisadoras, publicitárias, etc.)” e outro ligado aos setores tradicionalmente femininos, esse muito mais numeroso. O segundo grupo é ocupado por “empregadas domésticas e diaristas (categoria profissional a mais numerosa no Brasil); setor público de saúde (auxiliares de enfermagem); educação (professoras de maternal e ensino fundamental, sobretudo); prestação de serviços; profissionais do trabalho de cuidado”. A autora aponta que a necessidade de maior formação profissional e de diplomas para a obtenção de promoção redunda num sacrifício maior para as mulheres do que para os homens, dado o tempo extra no trabalho profissional. Também indica a situação angustiante em que são colocadas as mulheres diante da necessidade de conciliar o próprio aperfeiçoamento e o dos seus filhos, opção que não é colocada para os homens. Dessa forma, a relação que se desenvolve entre trabalho, família e sociedade e entre trabalho, saber e poder acaba formando um ciclo vicioso, e não virtuoso, para as mulheres. A divisão sexual do trabalho e as formas da construção do feminino a ela relacionadas fazem com que as mulheres, por serem mulheres, tenham menores chances de ocupar posições na política institucional e de dar expressão política a perspectivas, necessidades e interesses relacionados a sua posição social no debate público. Flávia Biroli (2016) expõe que a cidadania das mulheres é comprometida por esse arranjo que tem impacto profundo nas democracias contemporâneas, uma vez que o equilíbrio entre trabalho remunerado e não remunerado e o acesso diferenciado a ocupações incidem nas hierarquias que definem as possibilidades de presença e de exercício de influência no sistema político. As mulheres, sobretudo as negras e as mais pobres, têm menos poder para politizar suas necessidades e interesses – o que não significa que não o façam, mas esse caminho é mais longo, mais difícil e se define em desvantagem relativamente aos grupos que detêm recursos para fazer valer os seus direitos junto ao Estado e no debate público (BIROLI, 2016). Essa forma particular da divisão social do trabalho - a divisão sexual - tem dois princípios organizadores: o princípio de separação, que define que existem trabalhos de homens e trabalhos de mulheres, e o princípio hierárquico, que atribui ao trabalho de homem valor superior ao trabalho de mulher (HIRATA e KERGOAT, 2007, p. 599). A divisão sexual do trabalho constitui privilégios – para os homens e entre as mulheres – de modo que interfere diretamente nas condições de acesso a tempo livre, remuneração, redes de contato e no reconhecimento de competências e habilidades, e, em consequência, interfere nas condições para tomar parte do debate público e atuar nos espaços da política institucional (BIROLI, 2016). Nesse ponto, é de se mencionar que algumas das decisões da Justiça Eleitoral examinadas durante a pesquisa reafirmam a teoria da divisão sexual do trabalho, já que uma das justificativas mais comuns apresentadas pelas mulheres que não obtiveram votos ou que receberam baixa votação é a desistência da campanha em razão da demanda por cuidado com membros da família. Dentre as decisões judiciais examinadas nesta pesquisa, estava o caso do Município de Candelária (AIJE n. 0600233-17.2020.6.21.0013 - ANEXO A), que, em especial, ilustra essa situação. Nesse processo, foram emitidas decisões divergentes pelos juízes quando do julgamento no Tribunal Regional Eleitoral, sendo que a maioria acompanhou a posição que não reconheceu a existência de fraude na candidatura. O desânimo e a falta de realização de “atos de campanha” pela candidata Elisabete naquela eleição foram justificados pela doença de sua mãe e gravidez de sua filha. O relator do processo acolheu a argumentação, em detrimento da demonstração de que a candidata era buscada pelo partido político quando demandada pela Justiça Eleitoral e de que, tanto a gravidez quando a doença da genitora eram preexistentes à campanha, bem como que a candidatura foi registrada já ciente dos percalços que enfrentaria. Elisabete recebeu apenas um voto, o que leva a crer que nem o cabo eleitoral contratado e pago com recursos públicos prestigiou sua contratante. Já a divergência pontuou que haveria indícios no caso de que a candidata foi inscrita justamente porque tinha o motivo para a desistência já articulado meses antes do registro eleitoral, atribuindo responsabilidade ao partido pelo estratagema que reforça a divisão sexual do trabalho. Outro voto no mesmo processo reforça que a dedicação da candidata ao cuidado com outros membros da família é “praxe” e que não seria razoável exigir ou esperar que a mulher mantivesse aspirações políticas nesse contexto. A posição vencedora do debate bem ilustra o que afirma Flávia Biroli (2016), para quem “(...) a divisão sexual do trabalho é estruturante das identidades e alternativas. Nessa condição, é ativada pelas instituições, pelas políticas públicas (ou pela ausência de certas políticas) e, em conexão com elas, pelas formas simbólicas de afirmação do feminino e do masculino que se definem em outras dimensões das relações de gênero”. Disso, é possível verificar um reforço dos estereótipos de gênero justificando o déficit na representação política de mulheres mesmo quando da aplicação de política pública que busca superá-la. No mencionado julgamento, ficou evidente a compreensão e as concepções convencionais do feminino e do masculino, destacadas por Flávia Biroli (2020), a naturalizar que as diferenças nos papéis desempenhados e nas responsabilidades assumidas por mulheres e homens acarretam uma série de desvantagens para elas. Para além e retomando o aporte teórico de Araújo (2012), o conceito e as dimensões da cidadania também incluiriam a representação política e o ativismo cívico, e ainda, mais recentemente, o debate sobre direitos, liberdade, igualdade social e julgamento político. Déficits de cidadania, como aquele relacionado às mulheres, são déficits democráticos. A teoria política elenca, então, três aspectos fundamentais da presença de mulheres – isto é, para a representação feminina - nas esferas de poder político. A representação pode ser: descritiva, ou seja, de tal forma que se assemelhe à própria presença na sociedade; substantiva, ao considerar que um grupo potencialmente representa melhor as suas próprias demandas, construindo agendas específicas; ou, por fim, a representação pode ter o efeito simbólico, ao gerar impacto positivo na própria representação futura nesta sociedade. As evidências empíricas e teóricas sugerem que a presença maior de mulheres vai muito além de uma questão de justiça e igualdade desprovida de significado; é, sim, estruturante da própria ideia de democracia e origem de uma agenda de políticas que pode beneficiar não só as mulheres como toda a sociedade (PHILLIPS, 2001; YOUNG, 2006; URBINATI, 2006; THOMÉ e BELARMINO, 2018). A participação das mulheres em todos os níveis do governo diversifica a natureza das assembleias democráticas e permite que o processo de tomada de decisões responda às necessidades dos cidadãos que podem ter sido desconsideradas no passado, além de favorecer o próprio equilíbrio do regime, uma vez que as mulheres não representam somente as pautas femininas, mas aglutinam em sua agenda demandas de outras minorias, fomentando a agenda de políticas públicas (ARAÚJO JÚNIOR, 2021). 2.2 Participação das mulheres e cotas de gênero A ausência das mulheres nos espaços de poder ou a evidente assimetria entre a quantidade de eleitoras e o número de mulheres eleitas são explicadas de formas diversas e sempre relacionadas à constatação de múltiplas barreiras. Variáveis institucionais, como magnitude dos distritos, tamanho e ideologia dos partidos, podem representar barreiras à participação de mulheres como candidatas, assim como questões como recrutamento partidário, financiamento de campanha, rede de apoio, trajetória política e fatores de ordem sócio-demográfica, pois a disputa eleitoral também é impactada por variáveis externas a este processo (SCHULZ e MORITZ, 2015). Fatores culturais e socioeconômicos também representam barreiras importantes, mas não é possível mensurar o peso dessas variáveis nas disposições e das chances das mulheres para concorrer e obter sucesso em cargo eletivo (ARAÚJO, 2009). A fim de minimizar ou tentar superar tais barreiras, Freidenberg (2021) aponta estratégias institucionais como ferramentas para impulsionar a representação política das mulheres na América Latina. A autora descreve um regime eleitoral de gênero como ferramenta frente às resistências de uma classe política que historicamente tem negado às mulheres o acesso ao poder e aponta “ondas” de reformas ou construções legais que vêm sendo observadas na região. A primeira onda está relacionada à luta por introduzir mecanismos de ação afirmativa; a segunda, ao esforço pelo fortalecimento das medidas das ações afirmativas; a terceira, ao reconhecimento da paridade de gênero como um caminho em direção à igualdade substantiva; a quarta onda, ao fortalecimento da paridade de gênero. O estudo indica a influência da primeira onda no Brasil, em 1997, e da segunda em 2009. As cotas seriam um “caminho rápido” para se alcançar a igualdade na política e sua adoção consagra a ideia de que não é razoável que as mulheres aguardem indefinidamente até que as relações sociais e culturais de gênero se alterem a ponto de possibilitar seu igual ingresso na política. Dahlerup e Freidenvall (2010, p. 408) descrevem que um regime de cotas pode ter vários graus de diferenciação: podem ser obrigatórias se estiverem em constituições ou em leis eleitorais, sendo vinculativas para os partidos políticos. Já as cotas voluntárias podem ser aquelas adotadas por partidos em seus estatutos ou programas partidários. Elas também podem incidir sobre as candidaturas (aspirantes que estão dispostos a se candidatar às eleições primárias e listas restritas ou candidatos indicados para representar o partido) ou sobre assentos. Krook (2006) identifica quatro fatores que normalmente estão ligados à adoção de cotas de gênero na política nos diferentes países, já que se trata de um fenômeno global: mobilização de mulheres para aumentar a representatividade; reconhecimento, por elites políticas, de vantagens estratégicas advindas das cotas; busca de igualdade e representatividade; e pressão exercida por normas internacionais. A autora, da mesma forma, relaciona os tipos de cotas que podem ser adotadas: reserva de assentos; cotas partidárias e cotas legislativas. Krook e Zetterberg (2014) indicam que a adoção de políticas que favoreçam a participação de mulheres foi introduzida em mais de 100 países. Embora adotado na maioria dos países, o sistema de cotas, em suas diferentes concepções, encontra como crítica o argumento de que elas contribuiriam para se conformar um “teto de vidro”, representando a cota mínima, na verdade, o topo da participação feminina. Outra distorção ocorre quando não há previsão que obrigue a eleita pela cota a assumir o cargo, podendo ser verificada em muitos locais a prática na qual os dirigentes partidários pressionam a legisladora a renunciar pouco tempo após se eleger para que um homem ocupe sua vaga (RANGEL, 2009). Apesar das ressalvas, é preciso reconhecer a importância dessa política afirmativa para a participação feminina e admitir que o mecanismo forçou o debate sobre questões importantes relativas à política institucional . Araújo e Sacchet (2022) afirmam que o mecanismo de cotas se tornou o principal meio para fazer aumentar o número de mulheres eleitas nos parlamentos nas últimas décadas, sendo que, na América Latina, apenas dois entre 18 países não têm lei de cotas ou de paridade. As autoras relatam que, geralmente, os países iniciam por adotar o percentual de 30% e posteriormente o ampliam até atingir a paridade (50/50). No mesmo sentido, as cotas político-eleitorais se apresentam como ferramenta fundamental para promoção da participação política, a qual, por sua vez, contribui para promover o controle das decisões públicas, o fortalecimento dos laços comunitários, a criação de uma identidade coletiva e confere legitimidade aos sistemas de representação (Araújo Júnior, 2021). Em estudo específico sobre a análise conceitual de cota eleitoral de gênero, Mona Lena Krook (2014) identifica divergências sobre como nomear, classificar e, em última análise, mensurar as políticas de cotas. A estudiosa também identifica problemáticas decorrentes de conotações negativas ligadas à palavra “cota” que têm sido utilizadas para argumentar contra estas medidas e para deslegitimar as mulheres eleitas através deste mecanismo. Paralelamente, descreve outras “opções”, como aquela adotada pela França, que desenvolveu o conceito de “paridade” como forma de superar as barreiras legais às cotas, já que essas últimas implicariam em direitos especiais para as minorias, enquanto a primeira representaria partilha equitativa do poder entre mulheres e homens. Da mesma forma, o estudo aponta os esforços em conceber nomes alternativos para as propostas de cotas que explorem aspectos políticos, culturais e normas sociais já amplamente aceitos em realidades locais, como o apelo por “garantias de igualdade”, no Reino Unido, o princípio de “todas os outras para as mulheres”, na Suécia, e o princípio da “zebra”, na África do Sul. Uma terceira tática seria usar a linguagem das “metas” e “recomendações” quando formas mais vinculativas de ação positiva são rejeitadas, quer a nível partidário, quer a nível nacional. O sistema de cotas refletiu no aumento significativo no número de mulheres eleitas na América Latina, mas não teve o mesmo efeito no Brasil, onde as cotas sequer aumentaram o número de mulheres candidatas na primeira década de sua implementação (ARAÚJO e SACCHET, 2022). Um dos fatores que explicam tal insucesso é a limitação da lei em produzir sanções efetivas para regular casos de infração no cumprimento das cotas pelos partidos políticos, o que se abordará na sequência. 2.3 As cotas de gênero no Brasil A ausência de previsão em lei de punições efetivas aos partidos que não preenchessem o percentual mínimo ou indicassem candidatas fictícias não é uma situação experimentada apenas no Brasil. Araújo e Sacchet (2022) apontam que diversos países da América Latina também experimentaram leis fracas ou estratégias partidárias para burlar a legislação, mas a atuação da Justiça Eleitoral, em alguns casos desde o início da adoção das leis, tem sido central para tentar assegurar a eficácia de cotas. Tribunais eleitorais atuam para fazer valer políticas de ação afirmativa, regulando e normatizando os “buracos legais” deixados na construção da política ou no seu descumprimento, na mesma linha do verificado por Freidenberg (2020). Araújo e Sacchet (2022) mencionam ainda que a judicialização veio tardiamente no Brasil, já que os tribunais eleitorais passaram a ser acionados sobre a questão do preenchimento da cota mínima desde 2010, mas somente a partir de 2014 iniciaram fiscalização mais efetiva em relação ao total de cotas preenchidas e, sobretudo, a partir de denúncias sobre candidaturas fictícias (ou “laranjas”, como são popularmente conhecidas), até mesmo com processos para cassação de chapas. Embora essa atuação tenha sido mais reativa diante do descumprimento das regras até 2018, a partir de então é possível observar uma postura responsiva às demandas de grupos que buscavam por medidas mais efetivas para suprir limites das regras e do próprio processo eleitoral. Essa atuação pode ser observada em relação à resposta dada pelo Supremo Tribunal Federal - STF ao ser provocado por mulheres representantes parlamentares, instigadas por setores da sociedade civil, na ADI 5.617, que questionava a transferência de recurso do então recém criado Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC). O STF decidiu nesta ação que não apenas 30% deveria ser o percentual mínimo do montante do Fundo público a ser transferido para as mulheres, como também deveria haver proporcionalidade entre o percentual de candidatas e os recursos repassados a elas. A mesma norma de proporcionalidade passou em seguida a ser exigida também para o montante do Fundo Partidário destinado às campanhas eleitorais e para o tempo de exposição das candidatas no horário de propaganda eleitoral gratuita de rádio e televisão. Os instrumentos legais comumente utilizados para incrementar a participação feminina na política são a reserva de cadeiras e de vagas para mulheres nos parlamentos, assim como as cotas partidárias, como já se viu. O Brasil optou por uma previsão bastante tímida, a reserva de vagas para registro de candidatos, e com um percentual também modesto (30%), sendo que atualmente existe a necessidade de que os partidos e federações apresentem candidatos de ambos os gêneros nas eleições proporcionais. Apesar de a legislação eleitoral no país ser bastante extensa e detalhada, a norma que prevê as cotas é apenas um parágrafo de poucas linhas na Lei das Eleições, com o seguinte conteúdo: “Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo” (BRASIL. Lei n. 9.504, 1997, art.10, §3º). A regra é aplicável apenas às candidaturas do sistema proporcional (eleição para os mandatos de vereadoras e vereadores, e deputadas e deputados estaduais, federais e distritais). Aqui cabe uma breve digressão: apesar de a legislação mencionar o termo “sexo”, existe consenso que o legislador quis se referir a gênero. É, portanto, um erro de linguagem. Cabe também mencionar rapidamente, já que este não é o foco desta pesquisa, que a identificação de gênero do eleitor ou da eleitora se realiza por autodeclaração no alistamento eleitoral, com vista a se respeitar a autonomia e a dignidade da pessoa. Para fins de cotas eleitorais, os gêneros são reduzidos a dois por autodeclaração: masculino e feminino. Recentemente, o Tribunal Superior Eleitoral também definiu que tanto os homens como as mulheres transexuais e travestis podem ser contabilizados nas respectivas cotas de candidaturas masculina ou feminina, conforme opção declarada à Justiça Eleitoral. Assim, nas ocasiões em que, ao longo do texto, se menciona “candidatura de cada sexo”, trata-se de remissão à expressão constante em lei, embora a referência se aplique ao gênero. O primeiro incentivo às candidaturas femininas no país ocorreu com o artigo 11, § 3º, da Lei n. 9.100/95, que previa que 20% das vagas deveriam ser preenchidas por candidatas mulheres. A interpretação dada ao dispositivo pela Justiça Eleitoral, de que o não preenchimento do percentual não gerava consequência alguma para o partido político ou coligação, tornou “a norma praticamente inócua e natimorta” (LÓSSIO, 2020). Posteriormente, a ação afirmativa sofreu modificação com a aprovação da Lei n. 9.504/97, com o incremento de 20% para 30% de candidaturas de cada sexo, mas ainda o partido poderia “reservar” a candidatura feminina, deixando de indicar mulher para concorrer. Em 2009, a previsão de “reserva” foi substituída por determinação de “preenchimento” das vagas de candidaturas por mulheres, ainda sem qualquer menção legal a possíveis consequências pela inobservância da norma. No Direito, é possível observar um fenômeno denominado de “legislação simbólica” ou “legislação-álibi”, que está relacionado à publicação de leis que confirmassem valores de determinados grupos, com o objetivo de assegurar confiança nos sistemas jurídico e político. Assim, diante de certa insatisfação da sociedade, a legislação-álibi aparece como uma resposta pronta e rápida do governo e do Estado, uma aparente solução para problemas, mesmo que mascarando a realidade. Se trata, portanto, de uma forma de manipulação ou de ilusão que imuniza o sistema político contra outras alternativas. Sua função seria introduzir um sentimento de “bem-estar” na sociedade, solucionando tensões, sem que a norma cumpra efetivamente o seu papel. Esse estratagema pode servir para adiar a solução de conflitos sociais através de compromissos dilatórios, exatamente porque está presente a perspectiva da ineficácia da respectiva lei. O acordo não se funda então no conteúdo do diploma normativo, mas sim na transferência da solução do conflito para um futuro indeterminado (LENZA, 2018). É de se cogitar que a previsão de reserva de vagas para candidaturas de mulheres, tal qual observado no caso brasileiro, seja um exemplo de legislação simbólica, se observados seus efeitos ao longo do tempo e a efetividade que vem sendo lentamente construída. Apesar de o preenchimento de candidaturas por mulheres estar previsto atualmente em apenas um parágrafo da Lei das Eleições, vários desdobramentos dessa regra foram extraídos a partir de interpretações do Poder Judiciário, as quais acabaram por integrar resoluções editadas pelo Tribunal Superior Eleitoral. Essas resoluções não são lei em sentido formal, embora tenham aplicabilidade e os candidatos e partidos estejam sujeitos a elas. O adensamento da política pública que estabelece a reserva de vagas para candidatas mulheres por via judicial, e não legislativa, acabou por constituir uma série de problemas decorrentes de conflitos jurídicos que decorrem de interpretações, além de ser um caminho tortuoso marcado por avanços e retrocessos até que as decisões sejam estabilizadas pelos Tribunais Superiores - isso quando não ‘superadas’ por reações legislativas. Marilda Silveira (2019) define como efetividade construída em pequenos retalhos as consequências da aplicação pelo poder Judiciário de uma ação afirmativa que não veio acompanhada de um sistema de controle. Todos os problemas, no entanto, seriam facilmente solucionados com o estabelecimento de reserva de cadeiras para as mulheres, mas as iniciativas nesse sentido enfrentam grandes resistências no Poder Legislativo. Em relação aos destinatários da norma, os partidos políticos, cumpre resgatar a lição de Clara Araújo (2005), que observa que estas instituições são organizadas com vistas ao acesso ao poder, cujo canal de exercício e de disputa política é a representação parlamentar e/ou governamental. Assim, ao lado de posições ideológicas, são os cálculos eleitorais que influenciam na esfera organizacional, definem as estratégias partidárias e o lugar dos atores nessas estratégias, inclusive o recrutamento e os investimentos eleitorais. Logo, é de se supor que a imposição de sanções às agremiações que subvertem a política de incentivo à participação feminina é especialmente relevante para a finalidade de fazer com que a representatividade seja um fator a ser considerado pelos atores eleitorais quando da formulação de estratégias de recrutamento e investimento em candidatas e candidatos. Retomando a necessidade de dar efetividade à norma atualmente existente, cumpre examinar não apenas a atuação do Poder Judiciário em relação a esse tema, como também a necessidade de sensibilização de todo o Sistema de Justiça sobre a questão da participação feminina na política. 3. As cotas de gênero e o sistema de justiça brasileiro Como se viu, o Brasil possui legislação prevendo o preenchimento de certo percentual de candidaturas de mulheres em uma chapa para que um partido político se habilite para concorrer a mandatos eletivos no sistema proporcional. O adensamento dessa política pública demandou intervenção do Poder Judiciário, o que acabou por constituir uma “colcha de retalhos”, cabendo tratar a partir de agora das resistências ao cumprimento da política de cotas. Inicialmente, deve ser ressaltado que tanto as resistências quanto a intervenção do Poder Judiciário não são situações vivenciadas apenas no Brasil. Por não ser o escopo da pesquisa, não se abordará situações ocorridas em outros países na América Latina, mas apenas referências que demonstram que a atuação judicial é importante nesses contextos. Tal qual em outras searas (OLIVEIRA, 2005), a atividade judicial ocorre por omissão ou por intervenção, tendo o Brasil experimentado cada um desses comportamentos em períodos distintos, como se verá a seguir. 3.1 Os contornos dados à política pública pelo Poder Judiciário Archenti e Albaine (2018), em estudo sobre os novos paradigmas jurídicos mais favoráveis ao exercício igualitário dos direitos políticos entre os sexos, apontaram que a ação do poder judiciário nem sempre contribui para o avanço em direção a uma democracia paritária substancial. A execução das normas depende, em muito, da interpretação que o Poder Judiciário confere aos textos legais, impondo sanções ao seu descumprimento ou elastecendo as hipóteses de exceção. A reserva de cotas de candidatura pode, por muito tempo, ter constituído legislação simbólica no Brasil, já que o que se observou foi um primeiro momento de esvaziamento dessa política pública, que perdurou da instituição da norma até 2015, ano em que o Tribunal Superior Eleitoral definiu qual seria o mecanismo processual que poderia possibilitar aplicação de sanções para o descumprimento da cota, já que a lei é omissa sobre isso. Assim, a efetiva observação da reserva de candidaturas - e a reação quando da evidência do registro de candidaturas fraudulentas de mulheres por parte dos partidos políticos - só ocorreu a partir da mudança na interpretação que o judiciário, mediante provocação dos participantes do processo eleitoral, deu à amplitude do conceito de fraude, de forma a preencher omissão legislativa, como se verá a seguir. Aqui, então, é de se observar posturas distintas do Poder Judiciário em relação à reserva de candidaturas: um primeiro momento de interpretações que esvaziaram o mecanismo de incentivo à participação de mulheres na política e, de certa, forma chancelam as posturas refratárias dos partidos políticos, e uma reviravolta, a partir de 2015, de forma a dar concretude à norma. Esse não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. Estudos que analisam o quadro latinoamericano mostram que apenas leis não são suficientes. Juízes eleitorais são atores estatais detentores da tarefa de impedir que as lacunas legais e a falta de supervisão permitam que as elites partidárias violem as exigências do regime eleitoral de gênero. As autoridades eleitorais são atores-chave que podem alterar as condições de manipulação, o comportamento evasivo das elites partidárias e coibir práticas que esvaziem os direitos das mulheres (FREIDENBERG, 2020). Retomando a questão da interpretação dada à norma que prevê a reserva de candidaturas, observa-se que a redação originária da norma contida na Lei das Eleições estabelecia a “reserva” de vagas. Com a publicação da Lei n.º 12.034/2009, a norma passou a prever que “cada partido ou coligação preencherá” o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo. A alteração do verbo, de reservar para preencher, e, posteriormente, a maior disposição do Poder Judiciário em evitar interpretações que transformassem a norma em letra morta, foram decisivas para a mudança no rumo que a questão vinha tomando. Os partidos políticos, a partir das construções e interpretações que viriam a seguir - de forma lenta, é verdade -, se viram obrigados a buscar mulheres dispostas a concorrer aos cargos legislativos. Muitos optaram por candidaturas “de fachada”, que ficaram conhecidas popularmente como “candidaturas laranja”. Os depoimentos prestados no processo do Município de Cacequi (ANEXO B), localizados em uma das decisões judiciais que fizeram parte da pesquisa, demonstram a natureza do “comportamento evasivo” dos partidos em determinadas localidades e suas manobras tendentes a evitar inscrever mulheres que realmente tenham interesse em realizar campanha eleitoral. Embora se tratasse de apuração de fraude nas Eleições 2020, foram ouvidas testemunhas que relataram situações ocorridas em eleições anteriores. Uma delas - Dionísia - afirmou que concorreu como vereadora em 2012 e declarou que fez 1 voto, não gastando nenhum recurso, relatando que o motivo de ter sido candidata foi apenas para completar a nominata, mas não fez campanha, não pediu votos, não participou de programas de rádio. Disse que, em contrapartida por ter sido candidata, lhe prometeram cargo na Prefeitura, trabalhando na Secretaria de Turismo, sendo dispensada por desavenças. Pela parte requerida, foi questionada os quais seriam essas desavenças que levaram a sua demissão, disse que por motivos políticos, pois seu pai era vereador e deu desavenças com o PTB. Disse que a partir dessas desavenças, saiu do partido e concorreu às eleições de 2020 pelo MDB. Questionada, disse que não foi forçada a ser candidata, que foi candidata de livre e espontânea vontade nesta eleição de 2020, mas na de 2012, foi lhe feita a proposta. Negou ter sido coagida, contou que apenas colocaram o seu nome, para completar nominata. Disse que não fez campanha, por que seu pai era candidato a vereador e votou no seu pai. Confirmou que, em 2012, ela e seu pai, foram candidatos. Em relação a eleição de 2020, contou que foi diferente, porque participou, fez campanha, fez propaganda, se envolveu. A evidenciar a frequência da ocorrência desse tipo de situação no município, a outra testemunha do mesmo processo - Juliana - contou que foi candidata a vereadora em 2016 e obteve zero votos. Também declarou que fez campanha, na ocasião, para outro candidato e que “nem sabia que tinha sido colocada como candidata, tendo ciência por um primo seu”. Além de não fazer campanha, ”assinava uns papéis, como se fosse do Banco”, levados por uma pessoa do partido, e questionada se tinha conhecimento de outras mulheres na mesma situação em 2016, indicou dois nomes. Dando prosseguimento, cabe revisitar o caminho percorrido entre a ausência normativa de incentivo à participação feminina na política e a consolidação de instrumentos que buscam favorecer a aplicação da norma e coibir a utilização de candidaturas fraudulentas. Aquele que pesquisar na legislação normas sobre as “candidaturas laranja” ou instrumentos para coibir a prática de fraude acabará por constatar que estes não existem nas leis produzidas pelo Poder Legislativo, já que a reserva de candidaturas foi estabelecida sem qualquer previsão de sanção ao seu descumprimento ou sistema de controle, como já se mencionou. E aqui surge o primeiro problema: como regra geral, não é desejável que os eleitos passem todo o período de seus mandatos discutindo judicialmente sua legitimidade ou estejam sujeitos à cassação pelo Poder Judiciário, de forma que a legislação eleitoral prevê poucas ações para questionar o resultado das urnas ou impor sanções a candidatos, e todas com limite estreito de prazo para ajuizamento. Do prestígio à vontade do eleitor decorre que os mandatos eletivos obtidos só poderão ser questionados em razão de abuso de poder, corrupção ou fraude (BRASIL, Constituição, 1988). Já as ações eleitorais são os instrumentos de proteção das regras do jogo político, por meio dos quais se busca aplicar, àqueles que as infrinjam, as reprimendas previstas na legislação eleitoral (ALVIM, 2016). Como a legislação eleitoral não previu punição para o caso de descumprimento da norma que instituiu a obrigatoriedade de inscrição de candidatas por parte dos partidos políticos, as consequências da resistência à participação efetiva das mulheres foram sendo delineadas aos poucos pelo Poder Judiciário. Apenas situações de abuso, corrupção ou fraude podem trazer consequências práticas para os partidos políticos que tentem ignorar os mecanismos de incentivo à participação de mulheres na política, de forma que se fazia necessário definir que ação eleitoral poderia ser utilizada nesses casos. Considerando a adoção legislativa de um sistema de reserva de vagas para candidatas em composições (chapas) partidárias, a fraude a ser reconhecida demanda a relação com o efetivo desejo da mulher em participar do pleito como candidata, o que pode ser verificado com a realização de campanha eleitoral em que a interessada realize atos para angariar votos para sua pessoa. Salvo se houver delação, confissão ou registro de conversas por gravação em áudio ou vídeo, a fraude acaba por se revelar apenas no curso da campanha, de maneira que o processo eleitoral reflete indícios de uma fraude que já foi praticada na convenção ou no registro, mas só pode ser verificada em momento posterior (SILVEIRA, 2019). Como, de modo geral, somente é viável afirmar que uma candidata não fez campanha após a realização do pleito, já que é possível ir em busca de eleitores até o dia anterior à eleição, e que o número de votos obtidos, um dos maiores indícios de campanha inexistente, só é conhecido após a apuração, um importante passo foi reconhecer que a ausência de campanha eleitoral caracteriza fraude. Antes do posicionamento adotado pelo TSE no julgamento do Recurso Especial Eleitoral nº 149, ocorrido em 2015, se entendia que a fraude no Direito Eleitoral estava ligada somente à votação e não abrangia a fraude à lei. Portanto, até 2015, sequer se reconhecia que houvesse um instrumento capaz de coibir a não observância da reserva de vagas para candidaturas de mulheres. Ainda que tenha se popularizado o uso da expressão “fraude à cota de gênero”, posteriormente o TSE admitiu que o desvirtuamento na apresentação de candidaturas femininas também poderia ser apurado como um abuso de poder partidário (MACHADO, 2018). Definidas as ações cabíveis, em agosto de 2017, o Tribunal Regional Eleitoral do Estado de São Paulo cassou o mandato de todos os vinte e dois candidatos de uma coligação no município de Santa Rosa de Viterbo, tendo em vista a detecção do preenchimento fraudulento das cotas. Naquele caso, dois dos candidatos registrados haviam sido eleitos e perderam seus mandatos porque ficou comprovado que pelo menos três das sete candidatas mulheres registradas não realizaram campanha eleitoral e nem obtiveram votos. Essa parece ter sido a primeira vez que o Poder Judiciário respondeu efetivamente à questão da fraude no preenchimento das candidaturas femininas, tendo ocorrido, portanto, oito anos após a mudança legislativa que estabeleceu a efetiva necessidade de indicação de mulheres para concorrerem aos mandatos eletivos. Nesses oito anos, não se tem notícia de que a não realização de campanhas eleitorais por mulheres registradas por partidos como candidatas tenha gerado qualquer consequência em algum lugar no país. E aqui reside uma das maiores barreiras ao reconhecimento da burla a essa política pública que busca favorecer a representatividade: como o reconhecimento da irregularidade envolve toda a chapa partidária, o resultado da atuação judicial por vezes é visto como “muito gravoso” ou algo que abalaria a soberania popular, já que um candidato ou conjunto de candidatos eleitos acaba sendo atingido pelo reconhecimento da fraude. Mas um fato é inegável: o efeito pedagógico e simbólico resultante das cassações de mandatos em razão dessa modalidade de fraude à lei. É a partir dessas punições, que acabam sendo amplamente divulgadas, que os partidos realizam seus cálculos estratégicos e acabam sendo desincentivados ao registro de mulheres que não desejam concorrer. Nesse sentido, em um dos depoimentos localizados em uma das decisões judiciais no levantamento de dados para esta pesquisa, a candidata Taziane declarou o que pareceu ser o parâmetro para o município em que concorreu para que uma mulher não tivesse sua candidatura questionada: “teria que ter pelo menos três votos e no máximo cinco, mas que se conseguisse mais votos seria melhor para ela” (ANEXO B). Em outro processo, membro de direção partidária declarou ter se afastado da agremiação por não concordar com o artifício que envolvia as mulheres, descrito como “esquentar a chapa” (ANEXO C). O julgamento paradigmático sobre a questão das sanções pelo descumprimento da lei que determina a reserva de candidaturas de mulheres é o proveniente do município de Valença do Piauí, em razão de esclarecer que o reconhecimento da fraude acarreta a cassação de todas as candidaturas da chapa. Até então, muitos sustentavam que, caso houvesse o reconhecimento da fraude, deveriam ser indeferidas apenas as candidaturas fraudulentas e as menos votadas, o que foi considerado pelo Tribunal como um “verdadeiro incentivo a se ‘correr o risco’, por inexistir efeito prático desfavorável”. Aqui reside um dos conflitos que frequentemente se apresenta na aplicação da punição aos partidos que registraram candidaturas fraudulentas: a cassação da chapa, por vezes, também resulta na subtração do mandato de mulheres que obtiveram boa votação e conquistaram mandatos. Foi o que ocorreu no Município de Rio Pardo: um dos principais argumento do partido contra o reconhecimento da ilicitude da candidatura de uma mulher que não recebeu sequer seu próprio voto foi que isso acarretaria a também a cassação do mandato da pessoa que obteve a maior votação na cidade na eleição proporcional e se tratava de uma mulher (ANEXO D). Aqui uma breve digressão: o reconhecimento da fraude a reserva de cotas de candidaturas para mulheres pode conduzir a resultados indesejados, como a subtração do mandato obtido por uma mulher, às vezes em favor de um homem. Foi o que ocorreu quando o Tribunal Superior Eleitoral cassou o mandato da Deputada Estadual de Roraima Betânia Almeida, eleita em 2018, devido à fraude na cota de gênero praticada por seu partido. No lugar de Betânia, assumiu o empresário J. Lopes, candidato pelo antigo Partido Social Liberal - PSL. Em 2023, quando a Câmara dos Deputados discutiu projeto de lei de reforma eleitoral – que acabou não sendo votado no prazo que possibilitasse sua entrada em vigor para as Eleições 2024 -, o relator defendeu proposta que vedava a “cassação do DRAP (de toda a chapa) quando da nova distribuição de assentos houver redução da participação feminina”. O dispositivo que traria tal previsão tinha a seguinte redação: “§ 3º-A Não serão aplicáveis sanções que resultem na perda do mandato ou que acarretem inelegibilidade de candidatas ou candidatos eleitos por partidos que não tenham preenchido a cota definida no § 3º quando a decisão judicial implicar redução do número de candidatas eleitas”. Apesar de não evoluir na questão da representatividade das mulheres na política, a proposta acima, se aprovada, aparentemente reduziria a incongruência causada pela cassação de mulheres quando outras mulheres fossem usadas para burlar a cota de gênero. O risco seria de um novo retrocesso na opinião dessa pesquisadora, já que, ao que parece, bastaria eleger uma única mulher para o partido não estar sujeito a qualquer sanção por utilizar candidatas fictícias para preencher os demais lugares. Logo, estaria criado o incentivo para que cada agremiação concentrasse todos os recursos disponíveis - sejam financeiros ou de qualquer outra natureza - que poderiam ser destinados a um grupo de mulheres em favor de uma única, aquela considerada mais viável. Mais uma vez, o mínimo se tornaria teto. Passando para outro ponto, o posicionamento do TSE também tem se mostrado, em alguns casos, bastante progressista ao exigir candidaturas femininas efetivas. Em um primeiro momento, era considerada “candidatura laranja” apenas aquela registrada sem o conhecimento da candidata. Em eleições posteriores, outros fatores passaram a ser observados, como a utilização de material de propaganda, existência de gastos e prestação de contas, todos considerados indícios que se entendia legitimar uma candidatura. Atualmente, já são encontradas decisões que rejeitam candidatas registradas com o único intuito de apoiar outras candidaturas, uma vez que “não se deseja mera participação formal, mas a efetiva, por meio de candidaturas minimamente viáveis de pessoas interessadas em disputar uma vaga”. Aqui, porém, é de se registrar que a pesquisa nas decisões da Justiça Eleitoral do Estado do Rio Grande do Sul localizou decisões que tratam dessa questão de forma bastante rigorosa, praticamente exigindo confissão escrita para reconhecimento de irregularidades em candidaturas de mulheres, o que se abordará mais adiante. Para além de definir mecanismos de controle e punições para o desrespeito à política de cotas de candidaturas, o Poder Judiciário também atuou no sentido de equiparar o patamar legal mínimo de candidaturas femininas ao mínimo de recursos do Fundo Partidário a lhes serem destinados (STF, ADI 5617, 2018, p. 211), bem como a distribuição dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e o tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão (TSE, Consulta nº 060025218, 2018, p. 62-74). Esses posicionamentos encontram consonância com outras iniciativas verificadas na América Latina, tanto que estudos destacam a importância das redes de mulheres que trabalham para que o avanço da agenda de gênero com a visibilização dos vazios legislativos e do desenvolvimento de atividades de litígio estratégico que permitam assegurar o cumprimento das normas de direitos políticos-eleitorais femininos. Apenas leis não bastam, é necessária a efetiva atuação da sociedade civil e dos agentes estatais para que as leis e o conteúdo das normas que deveriam proteger os direitos das mulheres não seja esvaziado (FREIDENBERG, 2020). A implantação da política de incentivo à participação de mulheres na política enfrenta desafios, sendo o principal deles as candidaturas fraudulentas. A fim de burlar a norma, são registradas pelos partidos políticos candidatas que simulam interesse legítimo em realizar campanha eleitoral e obter mandato eletivo por via da escolha popular, como já se demonstrou na descrição de situações localizadas e se indicará em outros exemplos. Embora a ausência de campanha, ou mesmo a campanha tímida sejam indícios de candidatura fictícia, é com a realização do pleito e a obtenção de votação irrisória que a fraude se consolida. Passada a eleição, aportam na Justiça Eleitoral as ações que pleiteiam a declaração de existência de fraude à cota de gênero. Algumas são propostas pelo Ministério Público e outras, por partidos políticos, candidatos e candidatas. Passa-se, então, a tratar das especificidades de uma candidatura fraudulenta. 3.2 Definição de candidatura fraudulenta Retomando a questão das fraudes à política afirmativa, Trotta et al (2022) apontam como problemática significativa para a consolidação de candidaturas femininas a existência de “candidaturas laranja”, cuja definição esclarecedora sobre sua caracterização não consta na legislação brasileira, gerando confusão em relação aos casos de abuso e as punições que devem ser aplicadas. A partir de estudo realizado sobre processos judiciais da eleição geral de 2018, Ramos et al (2020) apuraram que sequer há uma definição judicial clara e uniforme do conceito de “candidaturas laranjas” e nem dos elementos que o compõem. Ao analisar decisões de Tribunais Eleitorais, o estudo apurou que os elementos de caracterização da “candidatura laranja” são diferentes e até mesmo contraditórios entre um processo e outro, bem como dentro de um mesmo processo, entre uma candidatura acusada e outra. A falta de um conceito uniforme acaba por criar um cenário de loteria judicial - a depender de quem julga o processo, os critérios adotados podem ser um ou outro, resultando em decisões com consequências distintas - reconhecendo ou não e punindo ou não candidaturas. Mais uma vez, as mulheres sofrem prejuízo nesse cenário: as candidatas também ficam sem parâmetros para evitar ou se defender de eventual processo judicial contra elas. Por intermédio da análise das notícias veiculadas na imprensa, Ramos et al (2020) verificaram que o conceito de “candidatura laranja” comporta múltiplos sentidos, como os casos em que candidatas receberam zero votos e não realizavam qualquer movimentação de campanha, seja porque sequer sabiam que eram candidatas, seja porque se candidataram apenas para ajudar o partido sabendo que sua candidatura era de “fachada”, esperando que fossem candidatas efetivas na próxima eleição. Também foram taxadas assim as candidatas que tinham o desejo de concorrer, mas não recebiam qualquer apoio do partido, e as candidatas convidadas a compor a chapa a partir da promessa de apoio dos partidos, mas que acabaram não recebendo recursos, resultando em poucos votos e pouco ou nenhum ato de campanha. Fenômeno mais recente são as “candidatas laranjas” usadas para desvio de verbas eleitorais dos fundos públicos para candidatos homens. Todas as situações descritas pelos autores foram verificadas em alguns dos processos relativos às Eleições 2020 no Rio Grande do Sul examinados, embora a fraude não tenha sido reconhecida em todos os casos. Embora se acredite ser menos frequente atualmente a candidatura de mulheres que sequer sabem que são candidatas por conta de exigências e maior cuidado da Justiça Eleitoral com o registro de mulheres, ainda assim foi identificado na pesquisa qualitativa um caso que confirma o recorte teórico. No Município de Lajeado (processo nº 0600995-82.2020.6.21.0029 - ANEXO E), foi reconhecido que duas mulheres foram inscritas como candidatas contra sua vontade. Trechos da sentença descrevem como se perfectibilizou a fraude, intermediada por pessoa que coletou documentos e informou que se destinavam a formalidades do partido e pré cadastro. Foi coletado também depoimento, no qual a candidata relata como foi abordada: Elisângela afirmou que “não sabia que era candidata. Referiu que Adriano lhe procurou para fazer um pré cadastro como filiada ao partido, caso isso fosse necessário, já que era filiada ao partido. Referiu que Adriano lhe disse que caso não preenchesse o pré cadastro, cairia fora, mas não sabe o motivo. Esclareceu que, a pedido, levou seus dados ao comitê (RG, CPF, documentos do carro) e que tirou foto para colocar no pré cadastro. Afirmou que não assinou qualquer documento e que há nove dias antes da eleição veio o material de campanha e destruiu os santinhos. Inquirida, ainda disse que sequer sabia que era candidata, que sequer sabia que iria substituir outra candidata. Ainda, referiu que não recebeu valores nem mesmo prestou contas. Sequer fez campanha para si, não assinou procuração, nem mesmo declaração de bens, nem mesmo criou pessoa jurídica. Não sabe a origem de R$ 560,00 e nem sabe quem abriu referida conta bancária. Por fim, ainda disse que Adriano sequer lhe disse que ela, depoente, iria ser candidata.” A outra candidata - Dilce - também reforçou o procedimento utilizado pelo partido em seu depoimento. A sentença narra a coerção exercida sobre essa mulher, detalhando que ela (...) foi incisiva ao afirmar que nunca foi sua a intenção de candidatar-se e que fora pressionada, coagida e usada por Daniel (x) na perfectibilização de sua candidatura. Referiu, então, que era manicure e depiladora e, como tal, atendia as filhas de Daniel (x) a domicílio, ocasião em que Daniel se aproximou e lhe inquiriu se portava seu título de eleitor. A depoente apontou de forma positiva e, a pedido, lhe entregou o título. Disse que Daniel (x) pegou o celular e depois de manuseá-lo, devolveu o título à depoente e disse “pronto, agora você está filiada ao meu partido.” A depoente Nesse caso específico, a juíza que analisou o processo também ressalta a coragem das candidatas em testemunharem relatando o ocorrido, principalmente em razão de fragilidades econômicas e de confronto com familiares, os quais seriam prejudicados com seus depoimentos: (...) seus depoimentos foram indignados pelo envolvimento em tamanha "estratégia" e revelaram que, são mulheres que, embora humildes, fizeram um enorme esforço para falarem a verdade. Não se deve esquecer que Dilce (x) é separada e vive da atividade de manicure, não possuindo nenhum outro rendimento. Prestava serviços a família do candidato a prefeito, o advogado Daniel (x), ocasião em que o mesmo solicitou-lhe documentos para filiação. A firmeza do depoimento de Dilce mostra a força e a coragem da mesma e revela muito da conduta do requerido Daniel (x), razão pela qual seu depoimento deve ser prestigiado, se quisermos que as eleições no Brasil sejam realizadas de maneira mais ética e igualitária. Não menos corajoso é o depoimento de Elisângela, cunhada do requerido Adriano (x), candidato eleito vereador em Lajeado. Além de Lajeado, no já mencionado caso do Município de Cacequi, mulheres confirmaram já terem sido registradas como candidatas contra sua vontade ou sem o seu conhecimento em eleições passadas, demonstrando o quão contumaz o artifício é em determinadas localidades. Em relação às candidatas usadas para desvio de verbas eleitorais dos fundos públicos para candidatos homens, embora a decisão não tenha abordado a questão sob essa perspectiva, destoou dos demais casos aquele referente à candidata de Pinhal Grande (ANEXO F), que recebeu um volume substancial de recursos, em especial considerando o parâmetro local, e fez apenas um voto, o que poderia indicar que as despesas que declarou como suas na prestação de contas possam ter custeado a campanha de outros candidatos. Ainda, embora não caiba no escopo desta pesquisa por tratar de apurações em processos de prestação de contas de candidatos, cabe ilustrar a questão dos recursos financeiros com casos localizados nas Eleições 2020 no Município de São Borja (ANEXO N). Lá, a análise da Justiça Eleitoral apurou que as candidatas ao cargo de vereadora do Partido Socialista Brasileiro - PSB recebiam recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha - FEFC e repassaram boa parte da quantia a candidatos homens. Os argumentos que as defesas apresentavam nos processos eram padronizados, no sentido de que a mulher repassou os recursos públicos destinados ao incentivo para um homem “almejando que este atingisse um público alvo e assim aumentasse seu número de eleitores, de modo que ambos possuíssem condições de se elegerem no pleito eleitoral de 2020”. Em hipóteses como essas, as possíveis fraudes à política de cotas deixam de ser apuradas na perspectiva do abuso de poder ou de arrecadação e gastos ilícitos normalmente porque a constatação de sua ocorrência e o descobrimento de indícios e provas costuma ocorrer após o prazo legal, não havendo mais ação a ser proposta, ou porque os beneficiados com os recursos não são eleitos. Estes julgamentos em prestações de contas acarretam somente a determinação da devolução dos valores aplicados indevidamente ao Tesouro Nacional, quando reconhecida a irregularidade pela juíza ou juiz eleitoral. Situação semelhante seria aquela verificada no já mencionado processo de Candelária, em que cabo eleitoral de candidata foi pago com recursos especificamente direcionados a candidaturas femininas e o trabalho para o qual foi contratado não foi realizado, pelo menos em prol da campanha que o remunerou. Ainda na mesma linha que conceitua como “candidaturas laranja” aquelas relativas a mulheres que tem o desejo de concorrer, mas não recebem qualquer apoio do partido, ou de candidatas convidadas a compor a chapa a partir da promessa de apoio dos partidos, mas que acabaram não recebendo recursos, o caso ocorrido em Porto Alegre ilustra o conceito teórico. No processo n. 0601016-59.2020.6.21.0158 (ANEXO G), foi mencionada situação envolvendo oito candidatas que teriam denunciado condutas do partido pelo qual concorriam, com publicação no periódico Sul21, intitulada “Candidatas do PSL relatam promessas falsas e falta de repasses do partido: ‘Eu não admito ser laranja’”. Elas teriam procurado o Ministério Público Estadual buscando providência e teriam descrito as dificuldades encontradas pelo grupo, formado por candidatas que concorreram pela primeira vez em 2020 e que afirmaram que o partido havia prometido dar suporte e orientações para suas candidaturas. Na reportagem (ANEXO O), estão relatados problemas na campanha eleitoral que vão desde documentos entregues e não informados à Justiça Eleitoral pelo partido, problemas na abertura de conta bancária, ausência de inserções na propaganda eleitoral gratuita, até o constrangimento enfrentado por estas mulheres em suas comunidades em razão do ocorrido e do endividamento por conta de gastos efetuados contando com recursos prometidos e não entregues. Nessa ação, se entendeu que a questão das divergências e atrasos nos repasses ocorreu por problemas operacionais do partido político e pela centralização da distribuição dos valores pelo Diretório Nacional da agremiação, não tendo sido reconhecida a existência de fraude. As candidatas não foram ouvidas na instrução do processo. Ainda sobre a definição de candidatura fictícia, Wylie, Santos e Marcelino (2019) aproximam o conceito de candidatura laranja a “cordeiro sacrificial” (sacrificial lamb, no inglês), que é usado para definir candidatos em condições precárias ou cenários quase impossíveis. Também associando o termo “laranja” à pessoa interposta ou intermediária, a autora e autores elencam quatro modalidades que variariam segundo as dimensões da legalidade e da intencionalidade: laranjas em licença, laranjas não consensuais, laranjas ingênuas e laranjas estratégicas. Todas essas formas de “laranjas” desafiam o espírito da lei de cotas e configuram uma aplicação equivocada das cotas eleitorais de gênero. A terminologia “candidaturas fantasmas” é utilizada por Souto e Souto (2023) para descrever o mesmo fenômeno e mencionar, com base na pesquisa de Wylie, Santos e Marcelino (2019), a modalidade de fraude que consiste na apresentação de candidatas em substituição a candidatos homens que se encontram impedidos de participar do pleito eleitoral, mas que possuem o compartilhamento do mesmo capital familiar que a candidata a ser apresentada em seu lugar. É citado o exemplo da candidatura de Weslian Roriz ao cargo de governadora do Distrito Federal em 2010, ocasião em que seu marido, o então Governador Joaquim Roriz, estava impedido de concorrer e a esposa foi, então, sua “substituta” no pleito a fim de que os votos fossem “transferidos” para ela, que manteria os mesmos ideais e planos de governo do marido. O abuso e a má aplicação da lei de cotas representada pelo fenômeno das “candidaturas laranjas” é um obstáculo significativo à inserção de mais mulheres na política. Considerando que os estudos de identificação de fatores nas desigualdades vivenciadas na disputa eleitoral são essenciais para definição de estratégias e pressão por mudanças (BIROLI, 2020), a análise dos casos concretos se evidencia um caminho para corrigir o problema do acesso de mulheres à representação política. As evidências de fraude, no entanto, nem sempre conseguem ser demonstradas nos processos judiciais ou, mesmo que demonstradas, devem ser submetidas à avaliação judicial. Na sequência, serão traçadas algumas considerações sobre os parâmetros de avaliação judicial localizados na pesquisa. 3.3 A prova da fraude De modo geral, pode-se extrair da jurisprudência os elementos indiciários que apontam para uma candidatura fraudulenta, conforme arrolados no enunciado doutrinário aprovado na I Jornada de Direito Eleitoral, promovida pela Escola Judiciária Eleitoral do Tribunal Superior Eleitoral, de fevereiro a maio de 2020: Enunciado n. 60: A fraude à cota de gênero deve ser apurada mediante Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) ou Ação de Impugnação de Mandato Eletivo (AIME), devendo ser aferida pela análise conjunta dos seguintes indícios relevantes, entre outros: número significativo de desistências ou votação pífia de candidatas mulheres, especialmente de candidatas familiares de candidatos e de dirigentes partidários; prestações de contas padronizadas; e realização, por mulheres candidatas, de campanhas para candidaturas alheias (art. 10, §3º, da Lei das Eleições). Em uma das decisões do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul analisadas (processo nº 0601028-71.2020.6.21.0094, de Vista Alegre), foi mencionado trecho de voto proferido em processo no Tribunal Superior Eleitoral que analisa a questão da prova e a postura que os juízes eleitorais eventualmente adotam em ações que tratam da fraude à cota de gênero. No trecho mencionado, o Ministro Alexandre de Moraes afirma que, em determinadas circunstâncias, a prova exigida em juízo é quase “confissão dupla, do partido e da candidata laranja”. No mesmo voto, o Ministro também refere a existência de “uma industrialização de candidaturas laranjas de mulheres”, que representa a negativa da ampliação da participação da mulher, de forma a evitar que se alcance a “possibilidade de equiparação, pelo menos mínima de chances das candidaturas de mulheres”. Conclui que, ao adotar a postura de exigir prova irrefutável, a Justiça Eleitoral acaba incentivando as candidaturas laranjas. Segue trecho desse voto do Tribunal Superior Eleitoral: Eu diria, com todo respeito ao que foi dito anteriormente, que, nesse caso só há uma diferença em relação ao caso anterior: elas tiveram um voto. Elas lembraram, pelo menos, de votar em si mesmas. Porque o resto é absolutamente idêntico: não houve um gasto eleitoral, não fizeram campanha. Talvez – e aqui o Ministro Og bem salientou – aqui tenha sido mais acintoso, mas os elementos são idênticos. Uma delas, nesse caso, era namorada de um candidato a vereador e fez campanha para o seu namorado. O que eu disse anteriormente: a prática faz com que se chame as suas irmãs, mães, filhas, namoradas. A outra pediu, via rede, votos para outro candidato. Ora, mais do que isso para constatar fraude, nós estamos quase sumulando que há necessidade da confissão dupla, do partido e da candidata laranja. Porque não é possível tamanha coincidência, dois casos semelhantes, quase idênticos demonstrando exatamente que se não houver uma atitude firme da Justiça Eleitoral, infelizmente, essa cota de gênero jamais será respeitada. E também trago a experiência de quem já participou da política, com todo o respeito ao Ministro Sérgio Banhos, não há a mínima possibilidade de um partido implantar no outro uma mulher como candidata laranja, somente para prejudicar esse partido. Com todo o respeito ao que foi dito, quem conhece a realidade sabe que isso é absolutamente impossível. Primeiro, porque cada partido tem a sua cota de laranjas e, segundo, sempre há a necessidade da apresentação, abono de fichas. O que nós temos hoje nos mais de cinco mil municípios brasileiros, é uma industrialização de candidaturas laranjas de mulheres. E isso simplesmente é a negativa do que se pretende – e o nosso presidente, o eminente Ministro Luís Roberto Barroso bem salientou no caso anterior –, da ampliação da participação da mulher. Se num caso 75% das candidaturas eram laranjas, nesse outro caso 33%, se não tem nenhum apoio, não conseguem nem provar que fizeram campanha, nós nunca teremos a possibilidade de equiparação, pelo menos mínima de chances das candidaturas de mulheres. E, volto a dizer, com o absoluto respeito às posições em contrário, mas cada decisão da Justiça Eleitoral, principalmente dessa Corte, que sinaliza que há necessidade, como eu disse, de uma confissão dupla, isso acaba incentivado as candidaturas laranjas. Aqui, não tenho também nenhuma dúvida, como bem salientou o eminente Ministro Og Fernandes, que houve fraude, clara fraude das candidatas. Vejam, uma delas, que era namorada de um candidato que foi vereador eleito, disse que não lembrava nem do número com o qual concorreu. Nem do número lembrava. A outra, dizendo “não, nós trabalhamos muito, pelo partido e pelo vereador”. E diz “outro vereador”. Mais do que isso, para constatar a fraude, realmente, é exigir-se confissão dupla, confissão dela, confissão das candidatas e dos partidos. A constatação sobre a condução equivocada do julgamento dos processos sobre a cota de gênero, mais especificamente que “há alguns Tribunais Regionais Eleitorais que acabam todos, exatamente todos os acórdãos acabam sendo revistos em relação” ao tema já foi expressa pelo Tribunal Superior Eleitoral, assim como a necessidade de que se evolua para a exigência de cotas para “instituições estatais, pelo menos da Justiça Eleitoral”. No levantamento das ações objeto da pesquisa, foram localizadas trechos de decisões que chamam atenção porque deixam transparecer que o julgador ou a julgadora adotaram concepções bastante rígidas do que seria a prova apropriada para o reconhecimento de fraude. Para fins de exemplificação, transcrevo trechos de textos, seguidos dos números dos processos onde as decisões foram localizadas, a maioria de zonas eleitorais: “(...) quando se pretende a cassação de mandatos eletivos por inobservância de critérios previstos no ordenamento eleitoral, é necessária que a prova produzida seja inequívoca” (0600001-79.2021.6.21.0074); “(...) para que se possa considerar comprovada a fraude, é preciso haver, nos autos, elementos de prova que evidenciem, de forma cabal, a adoção de subterfúgios destinados a preencher a lista proporcional com nomes femininos dissociados de qualquer ato volitivo genuíno por parte das candidatas” (0600347-79.2020.6.21.0069); “(...) a fraude requer a demonstração inequívoca de que as candidaturas tenham sido motivadas com o fim exclusivo de preencher artificialmente a reserva de gênero” (0600001-05.2021.6.21.0034); “(...) para que se conclua pelo severo juízo de cassação da votação de todo o partido em um determinado município, é extremamente necessário prova robusta e inconteste da prática da fraude eleitoral, sob pena de se afrontar o princípio in dubio pro suffragium” (0600552-87.2020.6.21.0173); “Não logrou o representante, assim, produzir prova cabal de que a candidatura tenha sido lançada de forma fraudulenta” (0600523-77.2020.6.21.0095). Em um caso em que a candidata - Irma - não obteve nenhum voto (compareceu à eleição e votou em outra pessoa), fez propaganda eleitoral para outro candidato do partido que concorria ao mesmo cargo, detinha baixa instrução e foi inscrita como candidata mesmo com “doença e idade que a colocam no grupo de risco para a COVID19”, o juiz eleitoral fez constar na decisão que “para o acolhimento deve haver comprovação de fraude ajustada, com prova indubitável” (ANEXO H). As expressões “inequívoca”, “cabal”, “inconteste”, “indubitável” em muito se aproximam da prova “irrefutável”, que praticamente dá carta branca aos partidos políticos para que se eximam da viabilização de candidaturas de mulheres que realmente tenham interesse na vida política. A diferença pode ser sutil, mas outras expressões também encontradas nas decisões examinadas parecem mais adequadas para a interpretação que vise, ao mesmo tempo, proteger a soberania popular e prestigiar a necessidade de que todos os grupos se vejam representados na escolha dos representantes para ocupação dos cargos de decisão. Menciono: prova robusta, prova contundente, prova consistente. Para além da linguagem, a análise dos casos ocorridos no Município de Torres/RS chamou atenção da pesquisadora por destoar de forma muito marcante do conjunto das decisões examinadas. Naquela cidade, foram localizados dois casos, um envolvendo o Partido Socialista Brasileiro - PSB e, outro, o REPUBLICANOS. No caso da chapa do REPUBLICANOS, a mulher que teria sido registrada fraudulentamente - Karla - não era eleitora do município pelo qual estava concorrendo. O registro dessa candidata, na visão do magistrado e do Ministério Público local, seria indicativo de negligência na inscrição da mulher e nas correções exigidas pela legislação eleitoral. A ausência de manifestação sobre as notificações enviadas para correção e a atribuição da responsabilidade a terceiros seriam “ação amadorística” do partido e não configurariam fraude, ainda que a resolução do Tribunal Superior Eleitoral que trata do tema preveja que o percentual de gênero deva considerar os registros indeferidos. Em outras palavras, o partido registrou candidata que não era eleitora do município, não atendeu às notificações para manifestação e a resposta judicial considerou que aquela situação não fugiu à normalidade (ANEXO I). Ainda, ao analisar o caso do Partido Socialista Brasileiro - PSB, o mesmo juiz considerou na sentença que a fraude à cota de gênero só se constitui diante de comportamento doloso, que não teria ocorrido. O partido em questão registrou “um total de 14 candidatos, sendo 10 do gênero masculino (71,43%) e 04 do gênero feminino, que representava 28,57%, não os 30% mínimos”, e esse erro teria sido “sufragado pela própria Justiça Eleitoral”, que não verificou a inadequação do número de candidatos de cada gênero. Questionada a regularidade das candidaturas, em exercício retórico, a decisão afirma que reconhecer a ilegitimidade do mandato obtido pelo partido que não participou do pleito com o número mínimo de mulheres significaria “desprestigiar a soberania do voto popular, a expressão do voto e a sua tutela prioritária” (ANEXO J). Esse último exemplo é ilustrativo do argumento sempre presente nas ações em que se questiona o cumprimento da cota de gênero pelos demandados: a necessidade de prestígio da soberania popular. Embora se reconheça que a vontade do eleitor deva ser prestigiada, o argumento com frequência encontra muito mais amparo retórico do que factual, já que, no caso mencionado, a soberania popular era representada por um único candidato eleito com 510 votos em um universo de 29.836 eleitores aptos. O critério matemático, ainda que não deva ser tomado como primordial, permite questionar se menos de 2% do eleitorado de um município representam a soberania popular de forma a suplantar a interpretação mais literal da legislação. Mesmo que se considerassem os 1.798 votos nominais da agremiação e os 14 na legenda, ainda assim o partido não obteve 7% (sete por cento) dos votos dos eleitores do município, mas teve seu candidato mantido no cargo de vereador. Ainda que as duas situações verificadas no Município de Torres não sejam representativas da maioria dos casos encontrados, os exemplos são adequados para demonstrar que se mantém necessária a sensibilização dos atores do Sistema de Justiça, em especial de magistrados e membros do Ministério Público Eleitoral, para a questão da importância da participação feminina na política. 3.4 O depoimento das candidatas nos processos Retomando a questão da análise da prova em ações da espécie, cabe uma breve abordagem sobre o depoimento das candidatas. De regra, a candidata a quem é atribuída a fraude é defendida nas ações judiciais que apuram a regularidade da chapa por advogadas e advogados dos partidos ou por profissionais pagos pelas agremiações. Por si mesmo, esse fato resulta em que não haja o reconhecimento da ocorrência de fraude nas defesas, ainda que as mulheres possam estar ressentidas com partidos que prometeram apoio e recursos antes do registro da candidatura e se omitiram durante a campanha. Quando são ouvidas em juízo, existe a pressão dos partidos políticos, dos candidatos/as eleitos/as, bem como a pressão social em razão das repercussões que um depoimento reconhecendo a fraude pode ocasionar. Assim, ainda que muitos juízes só admitam reconhecer fraude diante da confissão de candidatas, essa é bastante rara. O silêncio e as respostas vagas e evasivas ocorrem com muito maior frequência. Dentre os casos examinados, houve confissão no Município de Lajeado (ANEXO E) e a Juíza Eleitoral, com muita sensibilidade, ressaltou na sentença a coragem das mulheres em falar a verdade nas circunstâncias em que se encontravam. Naquele caso, no já transcrito trecho da sentença, foi ressaltada a dificuldade de mulheres que são envolvidas em fraudes, muitas vezes por pessoas de suas famílias, em decorrência de sua vulnerabilidade econômica e ausência de rede de suporte. Nesse município em que a fraude foi reconhecida, Elisângela e Dilce foram registradas contra sua vontade como candidatas, a primeira por um parente e a segunda por um patrão. Também do exame das decisões, verificou-se que, quando o Ministério Público Eleitoral efetua uma investigação prévia com as candidatas, antes do ingresso com ações em juízo, muitos elementos relevantes surgem em depoimentos tomados de forma mais informal e antes de que as candidatas possam ser submetidas a pressões por parte de candidatos eleitos e dos partidos políticos. A prova da fraude nas ações judiciais ganha ainda mais complexidade com o advento do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, que foi concebido como um instrumento para que seja alcançada a igualdade de gênero. A publicação do Conselho Nacional de Justiça - CNJ que explicita o Protocolo explica que este foi criado com escopo de orientar a magistratura no julgamento de casos concretos, de modo que magistradas e magistrados julguem sob a lente de gênero, avançando na efetivação da igualdade e nas políticas de equidade. Ele busca o diálogo multinível com os sistemas internacionais de proteção, na medida em que adota o “modelo de protocolo latino-americano de investigação de mortes violentas de mulheres por razões de gênero (feminicídio)” e observa a recomendação da Corte Interamericana de Direitos Humanos de adoção de protocolos oficiais de julgamentos com perspectiva de gênero, para que casos de violência contra a mulher sejam tratados de forma diferenciada. Na elaboração do Protocolo, foram considerados estudos de documentos produzidos pela academia e Judiciário brasileiros, bem como pelos protocolos do México, Uruguai, Colômbia, além de instrumentos internacionais. Sua importância está na íntima relação que o direito tem na reprodução de desigualdades no Brasil, mas também do seu potencial emancipatório, quando realizado através da prática de magistradas e magistrados comprometidos com a igualdade (CNJ, 2021). O guia contém conceitos, passo a passo e questões de gênero específicas dos ramos da Justiça, como no Direito Penal, Previdenciário, Civil e do Trabalho. Ocorre que, conforme já se observou em julgamento ocorrido após o encerramento da coleta de dados para a pesquisa, a aplicação do Protocolo acabou por dificultar o reconhecimento de fraudes, aparentemente atraindo resultado adverso daquele que se propõe (incentivar a participação política ativa das mulheres). Isso porque a diretriz do CNJ pode ser interpretada de forma a conduzir à conclusão de que deve se atribuir especial credibilidade “às vozes, aos argumentos e depoimentos das mulheres, como partes e testemunhas”, confluindo para que apenas a confissão da candidata possa atestar a fraude. Nessa situação, um instrumento que deveria favorecer a igualdade de gênero acaba por enfraquecer a aplicação de uma política pública destinada a fomentar a participação feminina na política. O caso em questão ocorreu em Palmeira das Missões/RS, em um processo em que a sentença havia reconhecido a fraude à cota de gênero por entender que as justificativas da candidata para não realização de campanha eleitoral não eram adequadas, mas o Tribunal Regional Eleitoral reformou a decisão com base no Protocolo e na declaração da interessada que era acusada de fraude (ANEXO K). Se confirmada a tendência inaugurada por este precedente, mais uma vez o reconhecimento da fraude tenderá a ocorrer apenas nos casos de confissão das mulheres, dificultando as punições e debilitando a “colcha de retalhos” que vem sendo tecida no intuito de favorecer a participação das mulheres no processo eleitoral. Finalizando o ponto, rapidamente e de forma lateral, cumpre fazer menção à importância das ações judiciais que apuram a existência da fraude à cota de gênero, ainda que seus resultados nem sempre sejam os esperados ou venham no tempo certo. A documentação dos relatos das situações que ocorreram nos municípios acaba por se tornar registro histórico de dado momento vivido. A própria existência do processo judicial em algumas localidades acaba por forçar a comunidade a debater aquela questão. Ainda que essa percepção social possa não estar alinhada aos ideais democráticos em muitas situações, o primeiro passo acaba sendo dado. É possível também que o próprio debate na comunidade sobre a questão das candidatas favoreça que mais mulheres sejam eleitas, seja ou não a fraude reconhecida. Nessa linha, pode guardar semelhança o caso ocorrido no Timor-Leste, descrito por Krook (2014), país no qual as cotas de gênero foram fortemente apoiadas pelos intervenientes locais, mas acabaram por não ser instituídas em 2003 devido à pressão internacional, mas se supõe que uma proporção relativamente grande de mulheres foi eleita provavelmente em razão dos debates que contribuíram para a politização da questão da representação das mulheres, alterando o comportamento de seleção. No entanto, é inegável a revitimização das mulheres que se candidataram e acabam por ser ouvidas nos processos, já que praticamente têm de prestar contas dos votos de toda a família (quem são os membros, se são eleitores, onde votam, por que não votaram nelas). Nesse sentido, no processo de Trindade do Sul/RS (ANEXO C), o Juiz Eleitoral fez uma ponderação relevante sobre a questão familiar ao analisar o caso de uma candidata que havia recebido 08 (oito) votos. Na decisão, o magistrado mencionou que, ainda que a candidata Rosa tivesse uma família numerosa, somente sua mãe, seu marido e seus filhos votam no município (e alguns não teriam votado naquele ano), além do que as pessoas não precisam obrigatoriamente votar em alguém de sua família, revelar em quem votaram abrindo mão do sigilo do voto ou, apesar das relações de parentesco, partilharem do mesmo entendimento/posicionamento político-partidário. Outra questão diz respeito à revitimização e à violência política de gênero, que passou a ter previsão legal no Brasil a partir da publicação da Lei n. 14.192/2021. Apesar de lei ter sido instituída em 2021, a norma foi utilizada como fundamento de pedido em ação que foi anulada e retornou à primeira instância para instrução. Naquele processo, o autor apresentou pedido de desistência de ação e de oitiva da mulher que não teria realizado campanha nas Eleições 2020 a fim de evitar que essa fosse mais uma vez constrangida com o comparecimento à Justiça para ser ouvida, sendo que a primeira decisão mencionou rapidamente que ela teria estado internada em razão de quadro depressivo durante a campanha eleitoral. Embora o argumento aparentemente não tenha sido acolhido, é necessário o registro para que não passem em branco as agruras enfrentadas por essas mulheres e que inevitavelmente são revividas com a produção de provas nas ações que apuram eventuais abusos na Justiça Eleitoral. Neste capítulo, foram apresentados conceitos de candidaturas femininas fraudulentas, destacadas várias das situações localizadas na pesquisa qualitativa e verificada a complexa questão da apuração da prova realizada nas ações judiciais que apuram o descumprimento da política de incentivo à participação feminina na política como candidata. Da mesma forma, se evidenciou a necessidade de sensibilização dos atores do Sistema de Justiça, em especial de magistrados e membros do Ministério Público Eleitoral, para a atuação em processos dessa natureza. Na sequência, se pretende abordar as especificidades das Eleições 2020 e apresentar os dados quantitativos obtidos, assim como descrever o caminho realizado para essa apuração. 4. As Eleições 2020 As Eleições Municipais de 2020 foram bastante singulares, a ponto de justificar a pesquisa sobre a participação das mulheres, tão somente por conta de aspectos jurídicos relacionados à vedação de coligações, mas a ocorrência de uma pandemia nesse ano tornou esse processo eleitoral único. Mesmo antes do início do período eleitoral, o próprio debate sobre se as eleições deveriam ou não ocorrer, o posicionamento de alguns agentes públicos e o exitoso diálogo institucional que possibilitou que o pleito fosse realizado com sucesso em meio a um quadro sanitário complexo certamente darão ensejo a profundas análises sobre a consolidação da democracia no Brasil em um futuro breve. Na perspectiva restrita desta pesquisa, este capítulo pretende abordar aspectos jurídicos relevantes para as Eleições 2020 e abordar de modo breve, pontos relacionados à pandemia da Covid-19, sem adentrar nas questões relacionadas às restrições sanitárias, já que estas fogem ao escopo do estudo. Também, como etapa necessária, serão apresentados os dados quantitativos colhidos, com a descrição do caminho para sua obtenção. Ainda, outros achados na pesquisa qualitativa serão abordados nesse momento em razão de especificidades que a pesquisadora reputou que seriam dignas de destaque. 4.1 Fim das coligações e pandemia A eleição de 2020 está revestida de característica que a torna bastante relevante: a partir deste ano, passou a ser aplicável a Emenda Constitucional nº 97, de 4 de outubro de 2017. Parte da reforma eleitoral de 2017, essa norma proibiu a formação de coligações partidárias nas eleições proporcionais e, tendencialmente, representou um complicador para o cumprimento da cota de gênero por parte dos partidos políticos. O fim das coligações exigiu que os partidos preenchessem as vagas de candidaturas com suas próprias filiadas e, nas palavras de Ramos et al (2020), essa obrigação pode ter sido mais difícil do que parece. Os pesquisadores levantaram dados, a partir de informações disponibilizadas pelo TSE, nas eleições para deputada e deputado federal em 2018, sobre o cumprimento dos 30% de candidaturas femininas sob dois cenários: o preenchimento isolado do percentual pelos partidos políticos e o preenchimento considerando a coligação. A análise levando em consideração coligações ou partidos que disputaram de forma isolada identificou 68 listas (21,5%) em descumprimento com a norma eleitoral, proporção que aumentou para 43,5% quando os partidos foram analisados individualmente. Das 866 listas partidárias nos estados brasileiros, 377 tinham menos de 30% de mulheres. É possível que a vedação da formação de coligações e do preenchimento da nominata com mulheres de outros partidos justifique o que se observou na pesquisa das eleições de 2020: os processos apurando supostas simulações de candidaturas femininas foram distribuídos em municípios de todos os portes e envolveram siglas das mais diversas. Enquanto as coligações estavam permitidas, o reconhecimento da fraude era muito mais comum em pequenos municípios. Segundo Araújo Júnior (2021), isso se dá em razão de duas causas, sendo a primeira o fato de a prática do desvio em questão encontrar maior facilidade na sua execução nos pequenos municípios. Tal causa, por sua vez, seria resultado de uma multiplicidade de outros fatores, como um maior distanciamento e, portanto, menor controle das direções nacionais e estaduais dos partidos em relação aos ajustes nos diretórios e comissões provisórias, com uma atuação mais incisiva dessas agremiações para arregimentar, a todo custo, candidaturas femininas; a própria dificuldade de arregimentar candidaturas de mulheres sequer para cumprir o mínimo legal da cota, quiçá para efetiva competição eleitoral; um maior grau de competitividade em eleições polarizadas, o que faz com que se busque a vitória a qualquer preço; a presunção dos que concorrem ao mandato majoritário (prefeito) de que precisam obter maioria na câmara municipal, sob pena de ter inviabilizada a gestão em face da adoção, pelos vereadores de oposição, de decisões na sua grande maioria desprovidas de fundamentação e apenas em contraposição pessoal ao gestor eleito, entre outros. A segunda causa seria a pressão política sobre os membros das cortes eleitorais que acabaria por desestimular a cassação de mandatos de maior envergadura como os de deputado estadual ou mesmo federal, ao se exigir um quadro fático-probatório muito mais contundente da ocorrência de fraude. Logo, com a vedação à formação de coligações, a tendência seria de que a ocorrência de fraudes se desse em municípios de todos os portes. Os dados obtidos nessa pesquisa confirmam a tendência. No entanto, é necessário esclarecer que as situações localizadas e descritas nesta dissertação não constituem o universo das possíveis candidaturas fraudulentas no Rio Grande do Sul nas Eleições 2020. Como mencionado anteriormente, em razão da ausência de previsão legislativa sobre consequências e punições para a fraude à cota de gênero, o sistema de justiça ‘adaptou’ as previsões existentes para outras modalidades de ilícitos eleitorais de forma a aplicá-las a uma nova realidade. Essa adaptação resulta em que só sejam levados ao escrutínio do Poder Judiciário situações em que a chapa da qual participaram “candidatas laranja” tenha angariado ao menos um mandato eletivo. Se não houver candidato ou candidata eleita, não será possível a cassação de mandato e a ação eleitoral não será processada. Logo, mesmo que composta integralmente uma nominata de candidatos por mulheres sem interesse em concorrer, se o partido não tiver obtido os votos suficientes para eleger ao menos uma pessoa, não será o caso de intervenção judicial. Essa questão será retomada neste capítulo, tomando como parâmetro o caso de Redentora/RS. Fica apenas o registro de que qualquer levantamento sobre quantidade de candidaturas de mulheres registradas apenas para atendimento dos percentuais estabelecidos em lei, mas sem efetiva disposição para realizar campanha eleitoral, não pode considerar apenas o número de ações judiciais ajuizadas tratando desse tema. Ao retomar às considerações sobre esse pleito, outra peculiaridade das Eleições 2020 se mostra, sua realização durante a pandemia da Covid-19. A inviabilidade de aglomerações, as restrições sanitárias, o temor do vírus, o número de infectados e a ausência de vacinas em 2020 levaram muitos a sustentar que as eleições daquele ano deveriam ser suspensas, tendo surgido inclusive propostas de unificação de mandatos e eleições únicas em 2022. No entanto, mediante Emenda Constitucional, elaborada com a participação do Tribunal Superior Eleitoral, adiou-se a data de realização do pleito, mantida a realização das eleições no ano previsto. Nesse cenário e considerando as restrições sanitárias, as redes sociais da internet tenderiam a ser uma possibilidade de alcance de mais eleitores e de enfrentamento às limitações de campanha por conta da pandemia (TROTTA, 2022). Não sendo o objeto dessa pesquisa, tal recorte é realizado apenas para esclarecer a razão das menções que possam ser encontradas nas decisões judiciais analisadas a respeito da existência ou ausência de publicações de postagens em redes sociais pelas candidatas ou outras peculiaridades associadas ao contágio pela doença e aos grupos de risco. 4.2 Obstáculos na localização dos dados para a pesquisa A fim de localizar as informações sobre os processos judiciais pertinentes para a realização do estudo, inicialmente foi enviada mensagem para a Ouvidoria do Tribunal Superior Eleitoral solicitando os dados acerca do acionamento do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul em face dessas demandas. Foi delimitado um espaço de tempo de distribuição das ações e indicado o assunto cadastrado no sistema processual para o registro desses processos, de modo que fosse efetuada uma pré-seleção para encontrar, dentre as milhares de demandas do período eleitoral, aquelas que se adequassem, em tese, ao objeto da pesquisa. Vale mencionar que, no período eleitoral, a Justiça Eleitoral recebe ações de registro de todos os candidatos aos cargos em disputa no pleito, relativas à propaganda eleitoral, a abusos, a prestações de contas dos candidatos e partidos, dentre outras, não sendo viável examinar todo o acervo distribuído para verificar aquelas situações relacionadas à cota de gênero. Como já abordado anteriormente, as ações judiciais que discutem casos concretos de fraude às cotas de gênero tem um período específico e curto para propositura, normalmente a partir da data da eleição até 15 (quinze) dias após a diplomação. Tal marco temporal se evidencia porque o mais aparente dos indícios de desvirtuamento da política pública é a baixa ou inexistente votação das candidatas, o que só é perceptível com a divulgação dos resultados. Como a data do primeiro turno da eleição no ano de 2020 foi o dia 15 de novembro, se considerou como marco de busca as ações propostas desde o dia 15 de outubro, de forma que estivessem contempladas também eventuais demandas que abordassem possíveis relatos de problemas na distribuição de recursos de campanha por partidos políticos para mulheres. Questões processuais podem, excepcionalmente, resultar em ações distribuídas em prazos mais extensos em relação à diplomação, mas dificilmente em lapsos muito maiores. Por cautela, ao solicitar os dados ao Poder Judiciário, ampliamos o período abrangido na pesquisa em pouco mais de 04 (quatro) meses. Não se considerou a realização de eleições suplementares, já que não foi localizado nenhum relato de renovação de eleição proporcional no período de 2020 até a data do encerramento do levantamento de dados sobre as eleições no Rio Grande do Sul. Para a localização das decisões a analisar, se partiu do pressuposto que todas as demandas judiciais propostas na Justiça Eleitoral e nos demais ramos do Poder Judiciário Brasileiro são registradas em sistemas de acompanhamento processual com critérios definidos pelo Conselho Nacional de Justiça. Esse órgão também organiza as Tabelas Processuais Unificadas, que tem como finalidade estabelecer parâmetros para registro e catalogação das ações judiciais. Considerando que as tentativas de burla à política de cotas de gênero podem ser consideradas fraude ou abuso de poder, outro ponto já detalhado ao longo deste trabalho, foram selecionados os assuntos pertinentes nas Tabelas Processuais Unificadas. Dentre os assuntos disponíveis, foram escolhidos aqueles em que a fraude às cotas de gênero podem ser enquadradas: “Abuso - De Poder Político/Autoridade”, “Candidatura Fictícia” e “Corrupção ou Fraude”. Embora o assunto específico (“Candidatura Fictícia”) seja, em tese, aquele que resultaria no encontro das informações com maior facilidade, se considerou que sua criação recente - foi inserido nas tabelas processuais em 2019 - poderia não ter chegado ao conhecimento de todos os usuários dos sistemas processuais responsáveis pela inserção de dados, de forma que se optou por realizar a pesquisa de forma mais ampla. Em resposta à mensagem enviada à Ouvidoria do TSE requerendo os dados processuais, foi recomendado o envio do pedido ao Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul. Foi encaminhada então mensagem de igual teor ao TRE-RS, que encaminhou resposta acompanhada de planilha contendo as relações com os números dos processos que atendiam aos requisitos propostos. O exame do arquivo recebido indicava a existência de 159 ações cadastradas no 1º Grau de jurisdição com o assunto “Abuso - De Poder Político/Autoridade”; 57 processos com o mesmo tema no 2º Grau; 42 processos com o assunto “Percentual de Gênero - Candidatura Fictícia” no 1º Grau e 05 (cinco) no 2º Grau; 01 (um) processo com o assunto “Corrupção ou Fraude” no 1º Grau e 14 desses no 2º Grau, totalizando 278 ações. A partir do número da ação informado na planilha obtida e com a utilização da ferramenta “Consulta Pública Unificada”, foi efetuada pesquisa nas 223 casos que restaram com a eliminação dos números de processos duplicados e uma indicação equivocada, já que se referia às Eleições 2016. Conforme informado na página de pesquisa, essa ferramenta de consulta processual abrange os processos públicos autuados no sistema Processo Judicial Eletrônico (PJe) do Tribunal Superior Eleitoral, dos Tribunais Regionais Eleitoral e das Zonas Eleitorais. Os processos classificados nesse sistema como “sob segredo de justiça” ou “sigilosos” não são alcançados pela busca, sendo que, nesses casos, é apresentada ao usuário a mensagem “Nenhum processo encontrado”. Das 223 ações, se verificou que apenas uma delas, proposta no Município de Cruz Alta/RS (processo n. 0601001-28.2020.6.21.0017), não havia sido julgada até a data de encerramento do levantamento de dados - abril de 2023. Por outro lado, até o mesmo marco, 03 (três) dessas ações tiveram seu recurso analisado pelo Tribunal Superior Eleitoral, após o devido exame pelo Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul - TRE-RS. O TRE-RS deu provimento a alguns recursos, seja para reconhecer a fraude, seja para afastá-la, e o Tribunal Superior Eleitoral não reformou nenhuma das decisões nos casos que analisou. Após a leitura de 221 decisões, foram localizados processos judiciais que discutem a questão da fraude à cota de gênero nos seguintes Municípios do Estado do Rio Grande do Sul: Alvorada, Barão de Cotegipe, Bom Princípio, Cacequi, Cacique Doble, Candelária, Capão do Leão, Coronel Pilar, Cruz Alta, Encruzilhada do Sul, Entre Rios do Sul, Gravataí, Jaguarão, Lajeado, Maximiliano de Almeida, Muliterno, Nova Hartz, Palmeira das Missões, Pinhal Grande, Porto Alegre, Redentora, Rio Pardo, Santa Maria, São Jerônimo, Taquara, Torres, Trindade do Sul, Unistalda e Vista Alegre. Foram examinadas decisões proferidas em 43 processos, todos relacionados ao tema do preenchimento da cota de gênero, e se constatou que a fraude foi reconhecida, até o encerramento da coleta de dados, nos Municípios de Lajeado, Palmeira das Missões e Vista Alegre. O reconhecimento de fraude em primeira instância em Palmeira das Missões foi reformado pelo Tribunal Regional Eleitoral, que também deu provimento a recurso para cassar diplomas por fraude em Vista Alegre, contrariamente ao decidido na Zona Eleitoral. Para frustração da pesquisadora, após o encerramento da coleta e o exame dos dados, foi localizado, ao acaso, um processo que correspondia aos parâmetros da pesquisa e que não estava relacionado entre os processos informados pela Justiça Eleitoral. Trata-se da ação n. 0600772-23.2020.6.21.0032, de Palmeira das Missões, envolvendo o Partido da Social Democracia Brasileira - PSDB. Ao verificar os dados processuais registrados na Consulta Pública Unificada, foi possível observar que o assunto cadastrado em primeiro grau nesta ação é “Cargo Vereador” (o que justificaria não ter sido localizado), mas, em segundo grau, constava “Abuso - De Poder Político/Autoridade”. O achado extemporâneo demonstra que, apesar do esforço empreendido para que a pesquisa tivesse a maior abrangência possível e verificasse todos os casos, outras situações, além das descritas neste trabalho, podem existir sem que tenham sido localizadas. A opção pela identificação de relação de processos fornecida pela Justiça Eleitoral se deu em razão de que a ferramenta de busca de jurisprudência normalmente utilizada pelos pesquisadores do tema, como Ramos et al (2022) e Araújo Júnior (2021), fica restrita aos dados com que os tribunais alimentam suas ferramentas de pesquisa. Tais repositórios são compostos, de regra, por acórdãos selecionados (cujo critério de seleção não é indicado), normalmente não incluem as decisões de juízes eleitorais de primeira instância - justamente a hipótese mais numerosa - e algumas falhas de controle podem favorecer que dados sobre processos sigilosos não sejam incluídos. A opção que nos pareceu tanto mais trabalhosa (por abranger um número significativo de processos que não está relacionado ao escopo da pesquisa) quanto mais exata, no entanto, também se mostrou falha. A constatação da incompletude dos registros, por sua vez, é relevante para assinalar a necessidade de que a Justiça Eleitoral revise seus procedimentos de cadastro de processos em sistemas processuais, que desenvolva mecanismos aptos a garantir que o sigilo dos autos seja retirado no momento em que é proferida decisão de mérito e que as bases de dados de pesquisa disponibilizadas por tribunais sejam alimentadas por todas as decisões que, ao tratarem de questões de interesse de grupos minoritários, são dotadas de interesse público a justificar sua divulgação, além de dar transparência à condução desses processos. 4.3 Análise dos dados Foram realizadas eleições em 497 municípios no Rio Grande do Sul no ano de 2020 e concorreram aos cargos de vereador e vereadora 19.705 homens (63,91 %) e 11.127 (36,09 %) mulheres. A candidatura ao cargo de vereadora e vereador pode ser considerada “o primeiro passo na escada de ambição política da maior parte dos indivíduos interessados em perseguir uma carreira política e uma grande oportunidade para grupos sociais tradicionalmente subrepresentados na arena política” (BOHN, 2009), já que se lançar candidata ou candidato em uma eleição municipal demanda uma quantidade menor de recursos financeiros para que uma candidatura seja viável, bem como é possível, em pequenos municípios, ser eleita ou eleito com número não significativo de votos. Na pesquisa sobre as ações judiciais que apuraram a fraude à cota de gênero nas Eleições 2020 no Rio Grande do Sul foram encontrados casos em 29 municípios, envolvendo 45 mulheres. As candidaturas tidas por fraudulentas obtiveram entre zero (13 casos) a 54 votos (um caso) e os municípios nos quais houve a apuração judicial foram Alvorada, Barão de Cotegipe, Bom Princípio, Cacequi, Cacique Doble, Candelária, Capão do Leão, Coronel Pilar, Cruz Alta, Encruzilhada do Sul, Entre Rios do Sul, Gravataí, Jaguarão, Lajeado, Maximiliano de Almeida, Muliterno, Nova Hartz, Palmeira das Missões, Pinhal Grande, Porto Alegre, Redentora, Rio Pardo, Santa Maria, São Jerônimo, Taquara, Torres, Trindade do Sul, Unistalda e Vista Alegre. Considerando o eleitorado nas Eleições 2020, o maior deles é Porto Alegre (1.082.726 eleitores) e, o menor, Coronel Pilar (1.472 eleitores). Considerando o número total de candidatas (11.127) e o número de candidaturas questionadas (45), aparentemente a ocorrência de candidaturas fraudulentas de mulheres, ainda que todas fossem reconhecidas, seria muito baixa (0,4%), a indicar que este seria um problema de pouca relevância. Ocorre que, como advertem Robert e Lisdero (2016), é necessário evitar “ingenuidade epistemológica e metodológica” ao verificar apenas os dados absolutos. Um fator é especialmente relevante no objeto pesquisado: as peculiaridades das normas processuais eleitorais e a colcha de retalhos que vem sendo tecida pelo Poder Judiciário diante da ausência de previsão de sistema de controle da observância das cotas de gênero, o que resulta em que apenas possam ser ajuizadas ações judiciais para buscar o reconhecimento de candidaturas fraudulentas quando o partido obter pelo menos um mandato eletivo de vereador ou vereadora. Nessa linha, a decisão do Juiz Eleitoral no caso de Redentora (ANEXO L) bem ilustra a situação. Naquele município, o Ministério Público Eleitoral realizou investigação para apurar candidaturas de mulheres que tinham obtido votação pífia e entendeu pela ocorrência de indícios de fraude, propondo ação em relação a duas candidaturas de determinada agremiação - Ádima e Cleusa, do PSB -, mas deixando de ajuizar em face de outros partidos que se encontravam em situação fática semelhante. O juiz relata na sentença que o Ministério Público Eleitoral promoveu tal investigação administrativa em procedimento preparatório para a propositura de ação judicial. Refere que, nessa apuração, foi ouvida Eronita, candidata indígena que concorreu pelo PSDB de Redentora, que, tal qual as candidatas Ádima e Cleusa, não obteve votos, declarou baixos gastos eleitorais e não realizou campanha eleitoral em razão de ameaças. Em relação a Eronita, o procedimento investigatório foi arquivado, mesmo que existissem elementos indicando possível candidatura fraudulenta, já que se concluiu não ter havido qualquer benefício auferido pelo PSDB ou por outros candidatos homens da sigla, uma vez que não foi obtido nenhum mandato de vereador ou mesmo suplência por candidato desse partido naquela eleição no município. Foi observado que a estratégia de registros de candidaturas fraudulentas tem como objetivo justamente incluir mais homens na disputa com o objetivo de angariar mais votos e, assim, inflacionar artificialmente o quociente partidário, de modo a eleger mais candidatos. Se reconheceu que não haveria, naquelas condições, nenhuma medida efetiva a ser adotada pela Promotoria de Justiça Eleitoral para buscar eventual responsabilização dos agentes envolvidos. O Ministério Público concluiu na investigação que, em relação a outras candidatas, a existência de atos de campanha e maiores gastos mostraram-se suficientes para afastar os indícios de fraude. Naquele município, o Ministério Público Eleitoral apurou, então, a existência de potenciais candidaturas fraudulentas registradas por mais de um partido, ao passo que também reconheceu a impossibilidade jurídica de responsabilizar todos aqueles eventualmente envolvidos na irregularidade. Para além, o juiz também anotou que, em determinados casos, como aquele que estava sendo examinado, o reconhecimento da fraude em algumas situações e as limitações jurídicas desse sistema que vem sendo construído sobre um vazio legislativo podem vir a gerar consequências indesejadas. Essas foram assim descritas pelo juiz eleitoral: Todavia, sem perquirir os fundamentos que levaram à decisão de arquivamento parcial do procedimento preparatório eleitoral, cujo mérito não ouso questionar, é preciso ter presente que a destituição dos mandatos de Elizeu (x) e Joel (x), no caso de eventual procedência da presente ação impugnatória de mandato eletivo, teria como consequência lógica a anulação da votação recebida pelo partido na eleição proporcional, o que implicaria em alteração do quociente eleitoral e redistribuição das vagas, nos preciso termos expostos pelo impugnante: “sejam desconstituídos todos os mandatos obtidos pelo PSB, dos titulares e dos suplentes impugnados e, por via de consequência, sejam considerados nulos todos os votos atribuídos ao Partido Impugnado, distribuindo-se os mandatos por ele “conquistados”, segundo a regra do art. 109, do Código Eleitoral, aos demais partidos/coligações que alcançaram o quociente partidário (cálculo das sobras eleitorais)”. No entanto, é preciso recordar que em ADI 5947 – 04.03.2020 o Supremo Tribunal Federal julgou constitucional a regra que garante a participação de todos os partidos nas “sobras”, sem a necessidade de atingir o quociente eleitoral, como forma de assegurar representatividade a legendas menores (§ 2º do art. 109 do CE - Lei 13.488/17). Com isso, observo que as vagas redistribuídas com a eventual retirada do Partido Socialista Brasileiro - PSB teriam a seguinte destinação: uma delas seria distribuída, por média, ao Partido Democrático Trabalhista – PDT e a outra teria como destinatário o Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB. De sorte que o partido que levou a registro a candidatura de Eronita (x), em idêntica situação a de Ádima e Cleusa, mas não foi alvo de ação judicial porque, naquele momento, não teria auferido benefício algum, agora seria contemplado com uma das vagas, conquanto já não há mais possibilidade de processá-lo, tampouco poderia ter seus votos invalidados na presente demanda. Dito de outro modo, o PSDB, que teria cometido, em tese, o mesmo ilícito imputado ao PSB, seria favorecido com o resultado da presente ação, em detrimento à vontade popular sufragada nas urnas e à isonomia que deve nortear a atuação judicial, até porque a suspeita de fraude rodeou igualmente os dois partidos. Aliás, não é demais referir, para evitar qualquer inconformismo por parte de outras siglas partidárias, que a outra vaga iria para o PDT, partido que também teve suspeita de candidatura feminina fictícia, qual seja, a candidata Sheila (x), que concorreu ao mesmo cargo e pelo mesmo partido que o esposo João (x), sendo que a referida candidata totalizou 02 (dois) votos no pleito. […] Esclareço que esta abordagem não tem outra pretensão senão demonstrar o possível contrassenso que acarretaria eventual juízo de procedência desta ação impugnatória, uma vez que implicaria na destituição dos mandatos obtidos pelo PSB, por suposta fraude na composição da lista de candidatas, entregando esses mandatos ao PSDB, com idêntica situação de candidata do sexo feminino, bem como ao PDT, sobre cujas candidaturas foram levantadas semelhantes irregularidades, mas não submetidas ao crivo deste juízo. Além de demonstrar que, mesmo tendo verificado indícios de fraude em relação à diversas candidaturas, o Ministério Público Eleitoral apenas pode propor ação em relação a duas candidatas, o trecho destacado também elucida que a ausência de previsão de um sistema de punições para as fraudes acaba por acarretar que as soluções que vem sendo lentamente construídas, em virtude das características do nosso sistema, podem acabar, por vezes, em alcançar resultados não desejáveis. Naquele caso específico, o eventual reconhecimento da fraude acabaria por favorecer um partido também suspeito de utilização de candidatura fictícia, mas que não pode ser demandado no prazo legal. Em nenhum momento se duvida de que a cassação de mandatos dos partidos que realizaram a fraude seja a medida correta. Nessa linha, em outro trecho da mesma decisão do caso de Redentora, foi reconhecida “a relevante preocupação externalizada pelo Ministério Público Eleitoral, quando se reporta às fraudes a cota de gênero, verificadas a cada pleito, no sentido de que, ‘caso tais atos não sejam efetivamente punidos pela Justiça Eleitoral, ano a ano se verá tal reiteração, não se quebrando o ciclo da exclusão da mulher na vida política’”. A punição é indispensável para quebrar o ciclo de exclusão. A já mencionada debilidade da política pública poderia ser suplantada com a substituição das cotas de candidaturas por cotas de representação – reserva de cadeiras parlamentares exclusivamente para mulheres. Esta reserva não afasta a possibilidade de que mulheres com pouca expressão política, sem vinculação com as pautas femininas ou integrantes da família de chefes políticos possam ocupar as vagas, mas seu desenho institucional pode intensificar ou abrandar o risco (CALEFFI e SALGADO, 2015; SALGADO et al, 2015). Retomando a questão dos dados coletados, os partidos demandados e o número de casos em que estiveram envolvidos foram: CIDADANIA (01); Democratas - DEM (02); Movimento Democrático Brasileiro - MDB (04); Partido Democrático Trabalhista - PDT (03); Partido Liberal - PL (01); Progressistas - PP (07), Partido Socialista Brasileiro - PSB (04); Partido da Social Democracia Brasileira - PSDB (02); Partido Social Liberal - PSL (03); Partido dos Trabalhadores - PT (02); Partido Trabalhista Brasileiro - PTB (03), Rede Sustentabilidade - REDE (01) e REPUBLICANOS (01). A título ilustrativo, o gráfico abaixo representa o número de candidaturas (majoritárias e proporcionais) nas Eleições 2020 por partido no Rio Grande do Sul: Gráfico 1: Número de pessoas que se candidataram por partido no Rio Grande do Sul em 2020 Fonte: Tribunal Superior Eleitoral O gráfico apresenta a distribuição absoluta dos pedidos de registros de candidaturas associados aos diferentes partidos que disputaram as Eleições 2020 no Estado do Rio Grande do Sul. Os dados são dispostos em ordem crescente de grandeza: partidos com menor número de candidatas e candidatos encontram-se à esquerda do gráfico, enquanto aqueles com um quantitativo maior são posicionados mais à direita. O quadro a seguir resume os dados coletados na pesquisa, indicando o número de uma das ações que representa o caso (ou uma delas, quando foram mais de um processo envolvendo as mesmas candidatas), o município onde foi proposta, se a fraude foi reconhecida, a quantidade de candidaturas indicadas como fraudulentas na inicial e o partido que supostamente a teria cometido: Quadro 1: Seleção de dados coletados na pesquisa Fonte: Elaboração própria com base nas decisões examinadas Aqui também se assinala que os dados absolutos tendem a não fornecer qualquer informação para além de que o fenômeno das candidaturas fraudulentas não é exclusivamente relacionado a um campo ideológico ou a alguma agremiação em particular. Lembramos que os partidos que não elegem mandatários não podem ser demandados nessas ações, como já se viu; que muitas agremiações não tem diretórios e não lançam candidaturas em municípios do interior do Estado; e que ser demandado em uma ação não significa necessariamente que tenha havido fraude. Cumpre esclarecer que algumas ações foram propostas contra mais de um partido (em Taquara e Trindade do Sul) e que em alguns municípios (Encruzilhada do Sul, Maximiliano de Almeida, Nova Hartz e Torres) foi verificada mais de uma situação de suposta fraude envolvendo chapas diversas. Apesar de termos verificado quem eram os autores das ações (candidatas, candidatos, Ministério Público, partidos e/ou coligação), consideramos complexo apurar que atores demandavam com maior frequência como autores nessas ações, já que usualmente as figuras de candidatos demandantes se confundem com as de seus partidos e porque também é possível que coligações formadas para a eleição majoritária proponham as ações relativas às eleições proporcionais. Essa multiplicidade de possibilidades traria pouca exatidão às informações, diversamente do que acontece com os partidos que são réus/demandados. A iniciativa do Ministério Público em propor as ações também poderia ser considerada pouco consistente (07 ações em um universo de 33), mas esse dado não deve ser tomado como absoluto, já que o órgão pode ter realizado investigações administrativas, as quais não aportam no Judiciário, e concluído pela ausência de prova de fraude ou de viabilidade da ação (como em algumas das situações relatadas no processo de Redentora). Da mesma forma, optamos por tratar cada situação como uma unidade de exame, ainda que, com frequência, tenhamos localizado mais de uma ação que envolvia a mesma situação, o que é explicado, mais uma vez, pelas característica próprias das ações eleitorais, também a justificar que foi examinado um número maior de processos (43 processos) do que de casos (33 casos). A fim de demonstrar a opção realizada, pode se tomar a situação de Rio Pardo: para o mesmo caso, que envolvia as candidaturas de Elizandra e Ana Cristina, pelo PSDB, foram localizados 03 (três) processos - 0600584-12.2020.6.21.0038, 0600585-94.2020.6.21.0038 e 0600586-79.2020.6.21.0038 -, analisados na Zona Eleitoral e no Tribunal Regional Eleitoral, que representavam ações diferentes (Ação de Impugnação de Mandato Eletivo e Ação de Investigação Judicial Eleitoral), movidas pelo Ministério Público Eleitoral e por partido, candidatas e candidatos, mas tratadas como um único caso por envolver as mesmas duas candidatas de um mesmo partido acusadas de fraude. Como já mencionado, até o encerramento da coleta de dados, foi reconhecida a fraude à cota de gênero nos Municípios de Lajeado, Palmeira das Missões e Vista Alegre. Em Lajeado, as candidatas confessaram terem sido registradas como candidatas contra sua vontade, como já se descreveu. Em Palmeira das Missões, o reconhecimento da fraude em primeira instância foi revertido pelo Tribunal Regional Eleitoral, considerando o depoimento da candidata, ponto também já abordado. No último caso, de Vista Alegre (ANEXO H), analisado no processo n. 0601028-71.2020.6.21.0094, o juiz eleitoral, como abordado no ponto relativo a análise da prova, deixou de reconhecer a fraude por não vislumbrar certeza mesmo que a candidata não tivesse obtido nenhum voto (compareceu à eleição e votou em outra pessoa), tenha feito propaganda eleitoral para outro candidato do partido que concorria ao mesmo cargo, detivesse baixa instrução e tivesse sido inscrita como candidata mesmo com “doença e idade que a colocam no grupo de risco para a COVID19”. O Tribunal Regional Eleitoral reformou a decisão por entender que o conjunto probatório foi contundente a indicar a ocorrência da candidatura ficta, com acervo robusto de provas demonstrando que a candidata se manteve inerte durante todo o processo eleitoral, comportando-se como se não disputasse a eleição. Em dois dos casos examinados, as ações foram extintas em razão de problemas processuais - propositura fora do prazo e indeferimento da inicial. Em parte das decisões examinadas, não foi verificada situação local ou redação da decisão judicial que desbordasse da normalidade nessa espécie de processo. A praxe que se verifica nesses processo consiste em afirmação da fraude na petição inicial, apresentação de defesa, produção de provas, normalmente com oitiva de testemunhas, discussão sobre os elementos de campanha (publicidade, prestação de contas ou outro) e, por fim, a decisão judicial, que aprecia todos os elementos trazidos pelas partes para explicitar os motivos que levam a julgadora ou o julgador a reconhecer ou não a ocorrência de fraude. 4.4 Outros achados na pesquisa Ainda que se reconheça que a cassação dos candidatos eleitos por chapas em que mulheres foram inscritas sem a real intenção de concorrer e sem nenhuma chance real de disputar um mandato eletivo seja muito importante para que se avance no combate à sub-representação feminina na política, não se pode descartar que a acusação de fraude também pode ser manejada como tentativa de reverter uma frustração com o resultado das urnas. Nessa linha, é de se mencionar a situação ocorrida em Coronel Pilar (ANEXO M). Nesse processo, um candidato que já havia sido eleito em outras ocasiões e não obteve cadeira nas Eleições 2020 levou ao Judiciário troca de mensagens com amiga de infância que tinha participado da Eleição e obtido apenas 04 (quatro) votos, alegando fraude à cota de gênero. A acusação de fraude foi sustentada por gravação de áudio que integrou conversa mantida por aplicativo de mensagens (Whatsapp) em que a candidata Fernanda faz afirmações como “eu tô só por número lá”, “tu sabe que é só número”, “eu não vou fazer campanha, eu não vou tirar o voto de ninguém ali”, “como é que eu vou ficar tirando voto dos candidatos que realmente tão indo, que querem se eleger” e “mesmo que eu tivesse ali, que não tivesse sido por, por cota ou alguma coisa assim”. Ocorre que, no mesmo áudio, a candidata Fernanda também se declarou embriagada e fez tais menções no contexto de queixas sobre a situação que vivenciou ao abordar eleitores realizando sua campanha eleitoral no município. Constou no diálogo: “É sério mesmo aquele áudio que você postou? Depois vem reclamar da situação que está no Brasil e dos políticos lá de Brasília... Tá certo eles então... Aqui em Coronel Pilar se vende o voto por 50,00 ou 100”. A candidata também mencionou uma eleitora que a estava esperando em visita, mas com a finalidade de receber dinheiro em troca de votos. Nesse caso, a fraude não foi reconhecida em razão de que a conversa se referia a momento de desânimo em relação à campanha e falta de expectativa de sucesso nas urnas, indicando que houve tentativa de realização de propaganda eleitoral e posterior frustração com o contexto enfrentado pela mulher no município. Apesar do desânimo com a campanha, a candidata em questão obteve quatro votos dentre os 1.472 eleitores aptos na localidade na ocasião e o candidato mais votado para o cargo de vereador no município obteve 138 votos, para fins de comparação. O julgamento concluiu que o autor da ação, “derrotado nas eleições, aproveitou-se da embriaguez da amiga de infância para, omitindo e apagando mensagens insinuantes e insufladoras, dela obter declarações a serem usadas contra o partido adversário”. A candidata acusada de fraude também empregou recursos próprios em sua campanha e recebeu doação de recursos financeiros de um familiar para custear a divulgação de sua candidatura. Na análise do processo no Tribunal Regional Eleitoral, também se considerou que a candidata “desistiu da campanha, pois restou desiludida com a forma como teria de obter os votos, mediante compra dos mesmos, diante dos pedidos nesse sentido feitos pelos eleitores de Coronel Pilar”, o que acabou por gerar “uma desilusão com a política”. A simulação da candidatura não foi reconhecida nesse caso. Aliás, é este o objetivo que deve ser buscado nessas ações: diferenciar quem, por força maior, não tem possibilidade de realizar uma campanha plena, de quem se candidata já com o intuito de não fazê-la. É, portanto, lícito que mulheres desistam no decorrer da campanha. Outro ponto que ganha relevância a partir da experiência da candidata Fernanda com a corrupção eleitoral é a questão da vivência partidária. Segundo Clara Araújo (2005), a vida partidária fora dos momentos eleitorais pode servir a vários propósitos e refletir o tipo de dinâmica que o partido estabelece com seus integrantes e pode ser considerada, também, como importante fator de formação e de domínio das regras do jogo político. A autora reconhece que nem todos os partidos definem de modo idêntico o que constitui a “militância” e também a “qualificação política”, tudo a variar de acordo com os objetivos centrais do partido. Além disso, afirma que ter algum tipo de participação e convivência interna, cujas características dependerão da dinâmica própria a cada partido, pode ser algo importante para o conhecimento das regras do jogo, um futuro domínio da máquina partidária e possível competição eleitoral. Nessa linha, a vida partidária pretérita pode ser um fator importante para que as candidatas tenham ciência do que encontrarão nas campanhas. Ainda que se admita a dificuldade de organização da vida partidária em determinadas circunstâncias, a consistência de participação de mulheres na dinâmica partidária pode constituir elemento a ser ponderado em favor de ou contra mulheres que obtiveram desempenho pífio em campanha eleitoral, dentre outros elementos. Retomando a análise do conjunto de processos, o que se verifica é que as mulheres normalmente desistem de promover suas candidaturas manifestando desânimo com a campanha ou situações familiares que reclamam dedicação de alguém e, como já se viu, se espera que sejam assumidas por elas. O que se vê como regra nos processos são justificativas genéricas de decepção/desânimo, mas ocorrem casos em que essas experiências são descritas com riqueza de detalhes, como no caso acima citado, em que a mulher narra a situação não esperada vivenciada na prática, em especial, a corrupção dos eleitores. Aqui, o que se evidencia é a necessidade de apoio dos partidos às candidatas com o devido preparo para as campanhas. Cumpre lembrar que parte dos recursos públicos destinados aos partidos políticos, por determinação legal, deveria ser destinado à criação e manutenção de instituto ou fundação de pesquisa e de doutrinação e educação política, como também investido em programas de promoção e difusão da participação política das mulheres (art. 44 da Lei dos Partidos Políticos). Aliás, o compromisso partidário é o aspecto que deveria ser sopesado com maior rigor, já que, como destacado por Araújo Júnior (2021), o sentido teleológico da norma não é simplesmente o de “preencher vagas”, mas sim o de inserir de fato a mulher na vida política, tornando-a participativa nos processos eleitorais mediante o efetivo envolvimento nas campanhas e nas discussões partidárias. Os partidos precisam assimilar que a instituição de cotas de gênero não é o fim, e sim um dos meios para se alcançar a desejada participação feminina e fortalecer a democracia. Outro motivo para desistência - esse apenas declarado superficialmente em alguns processos, mas descrito com maiores detalhes nas notícias de jornal -, são as expectativas frustradas de apoio do partido na campanha, como foi ilustrado no caso de Porto Alegre (ANEXO G e a já mencionada notícia “Candidatas do PSL relatam promessas falsas e falta de repasses do partido: ‘Eu não admito ser laranja’). Cumpre mencionar que fatores culturais e violência também podem dificultar a inserção das mulheres, o que pode colocá-las numa situação bastante delicada frente à Justiça Eleitoral, como ocorreu no município de Redentora nas Eleições 2020 (ANEXO L). Nesse município, foi movida ação para fins de apuração de duas candidaturas de mulheres indígenas tidas como fraudulentas. A apuração da denúncia revelou que duas indígenas da mesma família não receberam nenhum voto, nem mesmo seus próprios familiares, embora tenham comparecido à votação. Também foram declarados arrecadação e gastos nas prestações de contas apenas de natureza estimada (doações de materiais de publicidade pelo partido político) e ausência de divulgação das candidaturas em redes sociais e em propaganda de rádio. Tanto o juiz eleitoral quanto o Tribunal consideraram que o abandono da campanha por estas mulheres - Adima e Cleusa - foi justificado por circunstâncias envolvendo a aldeia indígena em que residiam, em especial, a oposição ao cacique, que naquela eleição submeteu adversários políticos à séria e grave intimidação após o início da campanha eleitoral. Nesse processo, há relatos de que o cacique determinou prisões de opositores na aldeia, bem como afastamento de oponentes políticos de funções que exerciam. O contexto local, a influência da autoridade indígena sobre os membros da aldeia e sobre as candidatas e a conturbada realidade local foram considerados nas decisões judiciais, quando admitiram que razões externas e alheias às candidatas e peculiares ao ambiente sociocultural em que estavam inseridas afastaram a configuração de simulação de candidaturas. Em desfecho, é de se reconhecer que as eleições 2020 foram desafiadoras para as candidatas e os candidatos ao pleito em razão da pandemia da Covid-19, mas também para os partidos que tiveram que se adequar à impossibilidade de formação de coligações para concorrer no pleito proporcional em razão de alterações na legislação eleitoral. Muitas das mulheres que concorreram nesse ano tiveram suas candidaturas questionadas sob acusação de fraude. Ao longo dessa pesquisa, se procurou reunir informações especificamente sobre aqueles casos em que mulheres que concorreram ao cargo de vereadora no Rio Grande do Sul enfrentaram ações judiciais em que suas candidaturas foram discutidas. Ao longo do último capítulo, os dados desses processos judiciais foram analisados, assim como se procurou extrair deles informações que fossem relevantes para verificação de desvios na implementação da política pública que busca favorecer a participação feminina em eleições, considerando como parâmetro os casos do Rio Grande do Sul. Muito mais do que conclusões, o que se evidenciou é que os números não podem ser considerados de forma absoluta, já que, por peculiaridades da legislação eleitoral, apenas alguns casos são levados ao exame do Poder Judiciário. A pesquisa indicou que a apuração de fraudes à cota de gênero ocorreu tanto em municípios grandes quanto em pequenos e envolveu os mais diversos partidos políticos. Para além da oportunidade de coletar, analisar e consolidar tais dados sobre essas candidaturas de mulheres, a pesquisa também revelou a dificuldade na localização das ações judiciais que tratam desse tema e a necessidade de sensibilizar os agentes do Sistema de Justiça, em especial magistradas, magistrados, promotoras e promotores eleitorais acerca da importância da participação feminina na política para a democracia. 5. Considerações finais Para combater a desigualdade de gênero na política, o Brasil adotou cotas de candidaturas femininas em eleições, mas a aplicação dessa medida enfrenta resistências. Uma delas está no registro de candidaturas fictícias, fenômeno que deve ser combatido e que é apurado em ações que tramitam na Justiça Eleitoral. A instituição da política de cotas não veio acompanhada de mecanismos que previssem punições para os casos de fraude, o que acarretou a inobservância da lei durante muito tempo. O quadro começou a ser alterado quando o Poder Judiciário, a exemplo do que ocorre em outros países, passou a dar concretude à norma. A “efetividade construída em pequenos retalhos” acarreta muitas consequências não desejadas, mas é um caminho que vem sendo trilhado na busca pela cidadania. Se faz necessário analisar essas fraudes a fim de superar as barreiras que as mulheres enfrentam na participação política e para tanto são necessários dados. Nessa linha, se propôs o exame dos processos judiciais que tramitam na Justiça Eleitoral e enfrentaram a questão da fraude às cotas de gênero no Rio Grande do Sul nas Eleições 2020. No intuito de investigar as barreiras à ampliação do número de mulheres eleitas no Brasil, a presente pesquisa se dedicou a levantar informações sobre as mulheres que não obtiveram um bom desempenho eleitoral ao concorrerem ao cargo de vereadora no Rio Grande do Sul nas Eleições 2020 e foram demandadas em ações judiciais na Justiça Eleitoral, tendo sido acusadas de serem candidatas fictícias ou laranjas. O problema de pesquisa, dessa forma, envolveu escrutinar, a partir dos dados localizados nesses processos judiciais, os contextos em que os atores políticos violaram ou foram acusados de violar a reserva de vagas de gênero e qual foi o tratamento que a Justiça Eleitoral deu a essas situações. O objetivo geral do trabalho – a realização de análise empírica de casos concretos a partir dos relatos contidos nas decisões judiciais sobre as eleições municipais de 2020 - foi alcançado, assim como os objetivos específicos de levantar dados sobre o número de processos, identificar as características das candidatas e dos partidos envolvidos, colher os relatos das candidatas – quando estes foram transcritos para as decisões -, e compilar a argumentação utilizada pelos juízes eleitorais tanto para reconhecer a regularidade quanto a irregularidade das candidaturas supostamente fraudulentas. Dentro dos limites dos dados analisados, também foram apuradas características de candidaturas femininas tidas como aptas a provocar o ajuizamento de ações para verificar a ocorrência de fraudes e o reconhecimento de desvios. As informações encontradas foram confrontadas e confirmaram os aportes teóricos sobre o tema. Ficaram evidenciados os desafios encontrados pela Justiça Eleitoral, tanto pela construção jurisprudencial de soluções para a ausência de previsão legal de sanções, quanto na construção da efetividade da política afirmativa. A hipótese de pesquisa foi confirmada: as resistências às políticas de incentivo ao incremento da participação de mulheres na política podem ser verificadas pela conduta dos partidos políticos, que insistem em registrar de mulheres que não desejam ocupar um cargo eletivo e que, desde antes de entrar na disputa, já tem em suas circunstâncias pessoais o motivo para desistência da campanha. Da mesma forma, a indicação de candidatas com baixo ou inexistente capital político dificulta a obtenção de mandatos eletivos. Para além das hipóteses iniciais, a análise das decisões demonstrou que ainda se faz necessário sensibilizar magistradas, magistrados, promotoras e promotores eleitorais para a questão da democracia representativa. Se, de um lado, foram encontradas decisões que espelham o esmero de juízas e juízes, assim como do Ministério Público, em fiscalizar a situação nos municípios e interpretar com profundidade as dificuldades encontradas por estas mulheres e seu contexto social, também se viu decisões que demonstram baixo interesse pelo tema ou mesmo desprestígio pela política de inclusão desse grupo minorizado por parte dos mesmos agentes. Também foi notável, que, mesmo havendo relatos de repetição da ocorrência de fraudes ano após ano em alguns municípios, não se verificou qualquer menção à iniciativas no sentido de minimizar ou evitar as tentativas de fraude à lei. Ainda, a coleta de dados revelou dificuldades inesperadas, já que os processos judiciais que investigam essa modalidade de abuso são do máximo interesse público e deveriam estar disponíveis para consulta após a prolação da decisão a qualquer interessado. No entanto, seja por haver dispersão nas ferramentas de pesquisa, seja por não haver consolidação dos dados em um local específico ou pela manutenção do sigilo das decisões quando não haveria mais essa imposição, encontrar e consolidar informações sobre as candidaturas fictícias se mostrou mais difícil do que deveria. É, portanto, relevante que a Justiça Eleitoral reveja seus procedimentos de cadastramento de ações, divulgação de decisões e controle sobre o sigilo de autos. Em conclusão, é necessário que as barreiras à inclusão das mulheres na política sejam evidenciadas para que possam ser suprimidas. Devem ser constantes as lutas pela igualdade de direitos à participação política, porque constantes e inovadores são os desafios (Araújo Júnior, 2021).

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